Eu quase sempre vejo o dia amanhecer, mas hoje eu o vi após um sono, o que é raro.
O comum na minha rotina é assistir o nascer da manhã azul marinho na companhia dele. Companhia que segue a noite acordada comigo junto ao café, suco, bolo, cigarros e muito papo e assim as horas se vão rápidamente e acontece de vermos o dia nascer num plano de fundo azul marinho. Só então vamos pra cama. Juntos.
Hoje foi diferente. Vi o sol nascer após o sono, deixei ele na cama, nu, corpo quente, deitado, num semi sono e com um meio sorriso nos lábios após dizer "eu te amo".
Agora o sol se faz morno e a luminosidade é perfeita. Não incomoda.
Vim escrever. Hoje ele entende essas minhas saídas da cama, já não me pede pra ficar em seu ombro por querer meu cheiro por perto, assim como está passando a entender meus silêncios, meus segredos e desejos mais íntimos. Se contenta com nosso cheiro misturado no lençol e isso se faz suficiente pra dar continuidade a seu semi sono tranquilo, sempre depois de dizer que me ama.
Não sou poeta, nunca fui. Não sei esculpir palavras de forma a dar-lhes formato, cheiro e sentido poético. Nunca fui poeta e eu bem queria esculpir uma poesia pra ele, uma poesia que conseguisse descrever ao menos parte da beleza dos nossos dias e noites, das nossas semi mortes quando dentro um do outro, um poesia com o cheiro do nosso sexo e com a temperatura exata das nossas peles quando coladas, mas acho mesmo que se até hoje ainda não conseguimos definir ao certo o que acontece quando a gente se gruda, seria praticamente impossível transformar isso em poesia.
Ele faz relações matemáticas pra tentar se aproximar de uma explicação plausível. "Assíntota" foi o termo explicativo mais aproximado, mas ainda não satisfeito, continua a filosofar matematicamente sobre o assunto. Ele é um músico matemático. Eu tento escrever, mas sempre escrevo sobre nossas sextas feiras o que o deixa muito irritado, pois as sextas, a seu ver, são dele. Sim, ele é egoísta. Eu também e por isso sinto as sextas muito minhas. É o desequilíbrio do equilibrista na corda bamba. Sabe aquela "bambeada"que ele dá com o guarda chuva na mão ao andar pelo estreito fio? Essa mesma. Bambeia, chacoalha o guarda chuva e logo volta ao equilíbrio. O guarda chuva é o nosso amor. O que faz com que o equilibrista retome o equilíbrio e prossiga na corda bamba. Nunca há aplausos no final, ao contrário do show do artista assim como ao contrário do que deveria. O amor incomoda. E eu apenas lamento por isso, não me surpreendo mais.
Voltei ao quarto, peguei um cigarro dele, filtro vermelho, forte, lá no criado mudo. O meu acabou. Lhe dei um beijo e pude perceber que a minha ausência na cama ainda o incomoda, embora ele não mais a questione.
Eu gosto dessas pequenas coisas que compoem o cotidiano. Pequenos trejeitos, quase que imperceptíveis aos outros, perceptíveis somente a nós, no nosso mundo.
Eu gosto do cheiro do suor do batalhão de soldados misturado ao ácido da concha, cheiro que impregna no lençol e me nos traz um sono tranquilo. Gosto da temperatura, textura e gosto da boca dele (desde a primeira vez...), gosto da lança afiada e firme que abre as portas para o outro plano (nosso plano), onde não há cenário de fundo, nem céu, nem chão. Gosto dessa amálgama onde nossas almas de fundem sem se fundir (mais uma tentativa frustrada de explicação de um matemático). Contradição. Absurdo.
Gosto daqueles olhos tristonhos, muito mais do que dos longos cílios que o contornam (gosto do jeito que me olham e do jeito que piscam quando filosofa matematicamente sobre nós).
Gosto do contraste da pele branca com o cabelo preto. Gosto ainda mais do cheiro, que me excita e me descontrola. Eu "viro bicho"(sou bicho...), felina de fogo, mais uma tentativa dele de explicação para algo sem explicação. Muito aproximada.
Eu cheiro, lambo, me lambuzo, salivo, me ponho de quatro e ele "vira bixo". Sempre foi assim. Enfia a língua em meus orifícios melados e entra sem pedir licença. Invade."Vira bixo". Faz amor como homem apaixonado, fode que nem "bixo". Diz que me ama e me chama de gostosa. E eu sei que sou. Amada e gostosa. Ele fica puto.
A música que cantamos juntos nessa hora incomoda os vizinhos, mas a gente "vai embora", nem percebe e que se foda. Rimos disso.
Ele se desmancha em cima e dentro de mim. Derrete. Eu acho lindo. Tenho espasmos. Não sinto minhas pernas. Demoro a voltar. Ele também. Assíntota. Amálgama.
Não gostamos de gente. Não gostamos de gente perto da gente. Não queremos o mal de ninguém, nem do Vassalo. Só queremos terra, mato, flores e o silêncio da música do nosso canto e da sua viola. Café e cigarros sempre.
Estamos construindo nosso muro de pedra. Muro de arrimo que circunda e não permite que o que é nosso se esparrame e se contamine, muro de arrimo de onde poderemos ver, sós, pelo lado de dentro, protegidos e isolados, o por e nascer do sol.
Paula Miasato