quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

PARTIDA


Da noite mal dormida restou apenas uma leve dor de cabeça e a secura nos lábios. Sinais da cachaça que havia bebido na ânsia de pegar mais rapidamente no sono, o que não aconteceu naquela noite.

O despertador não tocou. Não houve tempo. A aflição pelo dia seguinte era tanta que acabou por despertar sozinho.

Tudo estava devidamente arrumado na pequena bolsa de lona rasgada no zíper. Pequenos pedaços ocasionais da sua vida, ajeitados aleatoriamente, porém com especial cuidado. Do lado de fora apenas o cigarro e o isqueiro. O cinzeiro lotado marcaria sua passagem por lá.

Levantou-se sem pressa. Ainda havia tempo. Tempo suficiente para relembrar em flashes tudo o que relembrou minuciosamente na noite anterior.

Lavou o rosto e olhou-se no espelho. Aquele não era o rosto de outrora. Passou bons minutos a observar sinais que nunca havia notado, rugas que não se lembrava quando surgiram. Cicatrizes de histórias que vivera até então. Voltou a si com o toque do despertador. Correu apressadamente para desligá-lo. Ficou com o estômago embrulhado e resolveu vestir-se. Era a única muda de roupa fora da bolsa. Um segundo de cólera o dominou e fez com que rasgasse a camiseta e o calção amassados de tanto rolar pela cama.

Verificou janelas, portas. Deu uma última olhada pela casa agora vazia de móveis e cheia de histórias. Ainda era madrugada, estava escuro, mas sua saída era necessária naquele momento. De fronte a porta relutava a olhar para trás, mas olhou.

Olhou o vazio enquanto ouvia o eco do ranger de uma madeira solta no piso. Sempre pensava em consertar aquela maldita, mas só se lembrava disso quando pisava nela. Riu insossamente. Agora não era mais necessário. Estava de partida e não mais se incomodaria com o barulho da madeira.

Fechou os olhos e respirou mais fundo. Como era difícil colocar um ponto final... Virou-se para a porta e deixando a roupa rasgada no chão e o cinzeiro sujo saiu.

Do lado de fora apenas o escuro da madrugada e um cão de rua dormindo encolhido num canto da calçada.

Respirou bem fundo... Era chegada a hora da partida.



PAM ORBACAM
(Imagem: obra de Virgínia Palomeque)

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