quinta-feira, 25 de agosto de 2011

SINESTESIA


Embora meu pensamento nesses últimos dias esteja tomado pela cacetada violenta de um passado não muito distante, entretanto inesgotável ainda que não resgatável, não sei ao certo explicar o porquê da tua imagem estampada na minha cara hoje quando entrei no ônibus a caminho do trabalho. Tranco dos bons, o necessário pra estar contente e aliviar a cacetada da realidade.
Aliás, não sei explicar porque quando entro num coletivo você me vem à mente. Acho engraçado associar sua figura de uma beleza que agrega algo entre o romântico e o pervertido a um objeto assim tão comum no meu cotidiano pessoal e ao mesmo tempo tão abstrato na nossa “história”, se é que se pode dizer assim, não encontro a palavra adequada, talvez seja “momento”, ou melhor, personificando a código de barras: “instante instável super hiper mega planejado e interrompido por foice ou cutelo definitivamente não alinhavável nem a agulha de carne e evaporado por palavras mal pensadas advindas de uma mente insana e impetuosa feminina”.
O transporte coletivo me lembra você. Que mixo. Poderia ser uma escultura, um poema de Drummond ou uma música do Chico, mas o que de fato leva meu pensamento à lembrança de sua pessoa é o transporte coletivo. É incomum, mas eu gosto. Gosto do desigual.
Devo me transformar em uma daquelas figuras abominavelmente estranhas que a gente flagra dentro dos coletivos fazendo caretas e esboçando risinhos estranhos e cínicos, às vezes mórbidos ou patéticos e toma como certo o diagnóstico: Psicose Esquizofrênica Delirante. Internação.
A verdade é que quando sento e me deixo levar ao trabalho ou a qualquer lugar que seja aos solavancos de péssimos amortecedores e ruas visivelmente porosas é batata: vejo você, sorriso pálido, desenhado, risquinhos (e não covinhas) nas bochechas, meu olho refletido no vidro dos seus óculos e por trás deles os seus, grudados nos meus.
Só depois disso então a música lentamente invade a cena traçando o mapa-múndi junto a caneca de café recém coado, da madeira molhada e das mãos geladas. Sinestesia pura. O sexo úmido e quente. O cheiro do café com sexo e do cigarro com o sabonete Lux Luxo (que mixo) separado até ontem na saboneteira a espera do próximo banho. Ontem por acaso eu abri a saboneteira. Ele está trincado, seco. Passou-se já algum tempo. Joguei no lixo.
Que mixo um coletivo me trazer lembranças de você. Além disso, enigmático.
Que mico admitir que eu pense em você, mas eu penso e acho isso ridículo. Rio sozinha e confesso, sinto uma sensação boa e única ao lembrar das mãos geladas e trêmulas alheias ao corpo quente, a pele branca e o sorriso convidando minhas coxas a sorrir junto como uma dança, um tango, expondo o subconvite escancarado da vulva molhada numa cumplicidade instantânea e voraz. “Vem!”.
 A boca que nega o beijo e faz crescer o meu desejo, desejo e  anseio que me trazem a lembrança e a impressão de que não aconteceu. Talvez não tenha mesmo acontecido. Talvez tenha sido apenas sonho. É. E sonho é sonho...
Eu talvez pudesse alterar minha conclusão se casualmente roçasse meu corpo de costas contra o seu e quem sabe até afirmaria com veemência se você propositalmente apalpasse minhas nádegas como naquele dia (sonho?), no momento em que sentei no seu colo e abri seu livro (não posso abrir livros, o mundo ao meu redor some).
Como diz Cazuza, “eu acredito no meu lado português sentimental”. Sonho ou realidade, seja lá o que aconteceu, ainda sinto seu cheirinho. Algo entre o romântico e o pervertido ficou grudado na mucosa das minhas narinas.

 Paula Miasato

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

ENCACETAMENTO

Nu d´aprés photo: crayon 6B,koh-i-noor 6B, sur papier canson mi-teintes.
Mirtes

Cavo túneis úmidos e quentes
contornados por dupla circunferência.
olho de cima e vejo
cacete duro, visível invisível.
Em quantos buracos já me meti?
E em quantas ancas não me grudei
Só pra sentir o choquinho
dessa corrente elétrica
que percorre o púbis
no percurso pré pirofágico
desse meu gozo leitoso.
Que nojo.

Paula Miasato






segunda-feira, 8 de agosto de 2011

SOBRE PAIS E FILHOS



Ter filhos ou não hoje é uma questão completamente controlável. Há recursos dos mais diversos para se evitar uma gravidez indesejada para os casais que pretendem programar o nascimentos dos filhos ou mesmo para os que decidem não os ter.
Há quem não se preocupe com a questão da prevenção, seja por desorganização ou mesmo por desleixo, ainda não entendo o porque, afinal nos dias de hoje informação é o que não falta assim como métodos contraceptivos oferecidos gratuitamente nos postos públicos de saúde, apesar da precariedade do atendimento especialmente nessa categoria, bem conhecidos por nós seja ela vivenciada na pele ou conhecida através dos meios de comunicação por quem não precisa se sujeitar as morosas filas de espera por atendimento, tendo condições de manter em dia o pagamento das altas mensalidades de planos de saúde que facilitam parcialmente o atendimento médico, mas não solucionam satisfatoriamente as necessidades do "cliente do plano". Ainda hoje o "cliente particular"é o melhor e mais rapidamente atendido. O dinheiro ainda manda. Enfim... Terra de ninguém a que vivemos, mas vivemos.
Filho é para sempre. Mesmo depois de adulto. Ser mãe ou pai é para sempre. Isso é fato real e imutável. Mesmo quem não tem filhos é capaz de ter essa consciência, basta refletir (linguagem pedagógica incruada... odeio...) um pouquinho, pois estar hoje em carne e osso nessa terra de ninguém significa ser filho de alguém, significa em parte ter a mínima consciência do que é a pa(ma)ternidade. Independentemente de exercer essa função, faz parte dela.
E num mundo como esse em que nós vivemos? Vale a pena ter filhos? Qual a vantagem ou desvantagem? Por que ter filhos? Ouço discursos dos mais diversos a respeito do assunto. Tem gente que desconsidera totalmente essa possibilidade por considerar loucura colocar no mundo crianças inocentes numa terra tão injusta, violenta e de difícil sobrevivência. Outros "não querem morrer sem perpetuar no nome", ou ainda só consideram a felicidade completa de uma relação a dois com a vinda de um filho. Há também os que tem penca de filhos porque adoram trepar e na hora do tesão esquecem-se totalmente que daquela foda gostosa pode vir uma vida... Para a vida toda... 
Devido a diversidade de opiniões temos e vemos hoje uma grande variedade de perfil nas nossas crianças. Mimadas, abandonadas, cheirosas, fedidas, trancadas a sete chaves eu seus apartamentos ou largadas a própria sorte nas ruas da cidade e inconscientemente prevemos o futuro de cada uma delas (e não venha me dizer que você nunca se pegou fazendo papel de vidente...). Fotografamos na mente a imagem dessas crianças e imediatamente traçamos um destino para cada uma delas: "essa tem um futuro brilhante! Nossa... coitada, essa com certeza vai virar marginal e parar na FEBEM". Rótulos. Grande paranormais ou videntes que somos. Grande bosta que somos, grande mundo de bosta em que vivemos.
Eu sou filha e sou mãe. Vivencio os dois lados da pa(ma)ternidade (fui e sou até hoje pai e mãe). Para mim  (e isso é muito pessoal) ser filha e ser mãe além de ser uma experiência única (frase típica, mas insubstituível) é construir e preservar histórias. Eu faço parte da história de vida dos meus pais assim como da história de vida da minha filha. Nós construímos isso. (do caralho!). Carrego na memória histórias da minha meninice e da meninice da minha filha, assim como meus pais também carregam, assim como minha filha está construindo as suas e participando da minha. Ouço as histórias da meninice de meu pai. Ouvia também as da minha mãe (ela morreu nova). A gente se descobre a todo momento e nossas histórias se fundem cada vez mais com o passar dos anos. Se transforma em uma única e grande história.

Este final de semana eu descobri como meu avô Eishim que eu não conheci morreu. Ele suicidou-se. Ingeriu veneno. Meu pai me contou, eu não sabia. Meu pai disse que ele tinha muito ciúme da minha avó Kana e em uma dessas crises de ciúme resolveu se matar. Meu pai tinha na época dezoito anos. Disse ele, apesar do raciocínio já bem prejudicado pela idade e por problemas de saúde que foi ele quem fez a barba do seu pai morto para enterrá-lo. Foi mais uma história triste que ele me contou, dentre tantas outras que quando mais moço mas já pai de família ele contava. Infelizmente ele tem mais histórias tristes do que alegres para contar. Meu pai passou fome, eu não.Temos histórias diferentes. Meu pai não chorava, agora ele chora. Mesmo assim continuamos a construir a nossa história agora junto as da minha filha. Histórias ainda de menina as dela. Um dia ela vai ser mulher... Pensando bem ela já é uma mulher. O tempo passa muito rápido e nós envelhecemos. É como jogar areia dentro de uma garrafa, quando chega próximo ao gargalo ela enche rapidinho e quando nos damos conta, se completa e transborda. Aí é a hora de botar a rolha. Um dia meu pai vai morrer, assim como morreu meu avô Eishim, assim como morreu minha mãe, assim como um dia eu também vou morrer.
Construir histórias não tem preço. Eu gosto de ser filha, gosto de ser mãe. É algo impagável.
Há quem não pense assim. Tudo bem, mas quem um dia irá contar o que ela um dia pensou da vida?

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar. 



(António Machado)
Paula Miasato





quarta-feira, 3 de agosto de 2011

SORRISO DE LUA QUEBRADA QUE PITA

(arte: Cassiano Ricardo Tirapani)


Uma amiga minha, Simone Selli postou em seu mural esses dias uma frase de sua pequena:
A Lua ta quebrada, mae.
Achei tao poetico que nem consegui comentar no mural dela. Passou.
Ja havia desligado o computador agora ha pouco (meus acentos nao estao funcionado). Fui ao quintal fumar um cigarro (reduzi muito, prestes a parar). As pontas dos dedos geladas, o vento cantando e no ceu, a tal lua quebrada.
Sentei no banquinho e traguei  diante da lua, que mais parecia um grande sorriso de negra. Parecia fumar tambem, junto comigo. As nuvens ora cobriam o sorriso da lua quebrada como se fossem as baforadas do cigarro, logo depois seu sorriso de novo pra mim. O cigarro dela, que sorria, lua quebrada em minha companhia, que fumava pra ela.
Estaria quebrada ou sorrindo? 
Os avioes que passavam no ceu, apesar de estarem tao mais proximos de mim do que a lua pareciam tao minusculos... Sao!
A lua quebrada sorria. Sorriso de negra. De negra que pita.
Sorriso de lua quebrada que pita.

Paula Miasato

SAINDO DAS TREVAS... DE NOVO! (Resgatada por Caco)





Conversando com Caco Araújo Bueno nesta madrugada ao silêncio ritmado do tic tac do relógio de parede verde da sala tive a plena certeza que fui precisa na descrição do meu perfil deste blog, que se inicia hoje as 2h51min, blog este que dá prosseguimento aos meus registros literários do "falecido e enterrado" "COCEIRA NA GARGANTA".
Fiz questão de exportar todos os arquivos desde 2009. Os mais antigos eu joguei na lixeira do velho computador numa crise de "senhor! livrai-me deste castigo que é a literatura!" e com isso perdi anos de escritos. Uma pena, porque não adiantou nada. Desde de 2000 escrevo e deleto, escrevo e deleto, crio blogs e excluo e a teimosia (está lá no meu perfil...) fez com que eu criasse outro blog, este aqui. Desta vez há pelo menos como perceber o processo de amadurecimento e recuo alternados, pois sou instável, (está lá no meu perfil) e vivo entrando e saindo do casulo. Já que o castigo está dado, "vamo que vamo"como diz minha amiga Alba Brito linda de viver que canta com a alma.
É. A coceira na garganta passou, mas a coceira nos dedinhos estava insuportável de tanta vontade de escrever online (meu vício) nada salvo no note e seja lá o que deus ou o diabo quiser.
Que fique claro que estou ressuscitando um morto, praticamente dando uma de Frankenstein, ainda  recolhendo os cacos carnais e os alinhavando. Ainda há tempo para a tempestade, mas como diz o imortal Max Murray, sou impetuosa (está lá no meu perfil...) e não resisto... Estou aqui, de novo, de volta.
"O QUE FICOU GUARDADO", a partir desta data, são registros de prosa e verso de acordo com meu tempo, com minha vontade, sem prazos, sem encomendas. São escritos que compartilho aqui com quem quiser ler embora adianto, no momento sem concisão, sem precisão ao som do canto de pássaros noturnos e do vento que não uiva, URRA na minha janela. Deve ser algo querendo entrar a qualquer custo, ou festejar, ou lamentar a minha cruz literária.
Caco, ainda tenho que conversar muito contigo a respeito de seu doutorado sobre micronarrativa. O Marcelino não me convenceu, mas vou ler Trevisan e Lobo Antunes (não me cobre, no meu tempo). 
Ah! Aviso! Se alguém encontrar post em duplicidade foi a bosta da importação do antigo blog que importou T U D O em duplicidade. Estou tendo o maior trabalhão para resolver isso... 
De mais, obviamente agradeço aqui meu caro amigo e artista CASSIANO RICARDO TIRAPANI (meu chefe também...)  por ceder uma de suas belíssimas obras como ilustração de plano de fundo da tela do recém nascido "O QUE FICOU GUARDADO". Thanks Boss! De coração É nóis queiróiz! Quero comer piruê. Se vira.
Dos dois últimos posts, o que tenho a dizer... ANA e ANA CLÁUDIA é o início de um projeto de Anas que nem começou e já acabou. Um livro de contos. Um livro de Anas. Portanto estão aqui. A terceira Ana  que escrevi perdi nos meus arquivos do note. Enviei por e-mail para o amigo e escritor Flávio Mello ler e me dar uma devolutiva mas... nem sinal de fumaça... A terceira Ana, (ANA CRISTINA) um conto sobre um vibrador e uma poltrona azul, se perdeu. Ficou com Flávio.
Enfim... São dois contos frescos e longos para um blog (não é Caco? Um dia dou trela pra João Cabral), mas como diz o escritor Nilo Oliveira em um de seus posts no blog "DE COSTAS PRO MAR", "quem quiser ler que leia, quem não quiser que veja as figuras". 
Escrevo apenas. Compartilho. É a parte que me cabe nesse latifúndio.
Sozinha (como sempre) desejo bom retorno a mim  mesma.

PS: Rishi, se fodeu! Estava aliviado com o enterro do "COCEIRA", né? Hahahaha!!!! Aqui está "O QUE FICOU GUARDADO"! Hahahahaha! (risadas fantasmagóricas copiadas de menina Edna Bertolim, exímia contadora de histórias).
 EU SOU MÁ!

Paula Miasato

ANA CLÁUDIA




Ela gostava de observar os homens e gostava de ser observada por eles. Era discretamente safada! Sabia que lambíamos os beiços depois que ela passava.
Ana não tinha um requebrado vulgar, era apimentado e ácido, nos fazia salivar e ela sabia disso. Era gostosa. Sabia que chegaríamos em casa e esperaríamos nossas inodoras esposas dormirem para nos masturbarmos gostosamente com a lembrança fotográfica do ritmo de seus quadris, discreto, porém sexualmente aguçado.
A minha cabeça era vorazmente preenchida por impurezas, e eu sei que ela sabia e sei também que ela gostava disso. Gostava de ser uma vadia enrustida.
Tinha curvas, leveza e um sorriso convite. Seus cabelos cheiravam xampu caro e cigarros, uma mistura de elegância com vadiagem. Isso me excitava.
Era uma putinha discreta. Não se oferecia. Apenas passava recolhendo pra si os olhares dos machos, inclusive os acompanhados, que levavam broncas e beliscões de suas fêmeas assexuadas.
Ana tinha predileção por mãos. Eu percebi após um tempo considerável de observação diária. Era sempre no horário do almoço. Ela passava pelos homens, os olhava rapidamente no rosto, mas seus olhos fixavam-se cuidadosamente nas mãos e Ana não se preocupava em disfarçar. Fazia sempre o mesmo caminho, sempre no mesmo horário, sempre no mesmo ritmo.
Percebi que esboçava sutil sorriso ao passar por homens com mãos brancas, sem calos, frias, macias e cheirosas.  Penso eu que ela imaginava essas mãos em seus seios e sentia tesão, entretanto engolia saliva grossa quando passava por homens de mãos morenas, secas, fortes e rústicas como lixa. Imagino que sua vagina rosa contornada por fino traço marrom molhava ao pensar nessas mãos grudadas em seus quadris por trás, deixando marca e cheiro de sujeira nas ancas.
Ana não era indiscreta ao vestir-se. Usava roupas que não marcavam o corpo, não usava decotes ousados nem saias curtas. Nunca mostrava o umbigo, aliás, pouco se via de sua pele além do rosto, pescoço, braços e tornozelos, mas a sensualidade de seus gestos me enrijecia por baixo do tecido fino da velha calça de linho desbotada.
Ana tinha cheiro de perfume importado, sexo e cigarros. Tinha pele alva, aparentemente quente o suficiente para sufocar e saciar qualquer macho.
Eu pensava em Ana mesmo nos dias em que não a via. Pensava que aquela mulher, por mais que cozinhasse nunca teria cheiro de cebola nas mãos, por mais que limpasse um banheiro, jamais me beijaria cheirando a água sanitária.
Eu sinceramente acho que Ana nunca teria outro cheiro, a não ser o seu próprio, de perfume importado, sexo e cigarros.
Minha mulher fazia a melhor feijoada do bairro. Era uma feijoada de saciar os desejos de qualquer um, daquelas que exalava o cheiro a quadras, mas ela nunca teria o cheiro de Ana, aquele cheiro de perfume importado, sexo e cigarros. O máximo que poderia alcançar era um misto de colônia da avon com alho amassado e unhas enrugadas e corroídas por desinfetante doméstico.
Não a culpo, ela até que tentava, mas o cheiro característico de esposa já estava impregnado na pele, nas roupas e nos cabelos.
Ana nunca cheiraria a esposa, embora demonstrava apresentar todos os requisitos para que fosse uma perfeita, mas esposas nunca são perfeitas, então Ana nunca seria uma esposa perfeita, porque cheirava a perfume importado, sexo e cigarros.
Eu desejava Ana. Todos os dias, mesmo nos dias em que não a via. Além do corpo, desejava saber o que ela pensava e como falava. Aliás, nunca ouvi sua voz, não conhecia seu nível intelectual nem sabia nada sobre sua vida e acredito que talvez fosse esse o motivo principal de meu encantamento por ela.
Na vidraça da minha retina, Ana era a mulher perfeita.
Um dia, após passar por mim como de costume no mesmo local e horário, ela coincidentemente encontrou um conhecido. Um homem.
Ela não o havia visto porque era de costume caminhar distraída, mas ele a viu e chamou seu nome. Ana. Foi nesse dia que descobri que a mulher de pele alva e cheiro de perfume importado, sexo e cigarros se chamava Ana.
Ela parou, delicadamente virou o pescoço em sua direção e sexualmente sem intenção caminhou até ele. Era algo naturalmente incorporado a ela. Ana era muito sexual, mas suas provocações sexuais eram casualmente despretensiosas. Nesse instante percebi que as solas dos seus sapatos não apresentavam desgaste nem para o lado de fora nem para o lado de dentro.
Perfeito!
Ana era perfeita. Ela pisava perfeitamente o que não danificava os saltos de seus sapatos. Tinha cheiro de perfume importado, sexo e cigarros.
Senti inveja daquele homem. Ele a conhecia, e por mais que tivesse cara de bobo, eu podia ver mesmo à distância o movimento incessante e proposital de suas narinas a aspirar o cheiro de perfume importado, sexo e cigarros que brotavam de Ana. Enquanto ele conversava, a espuma acumulava nos cantos da boca. Devia estar de pau duro.
Inveja. Eu não tinha mãos brancas frias sem calos, nem morenas e rústicas. Minhas mãos não tinham personalidade. De todas as vezes que passou por mim, Ana nunca fixou os olhos em minhas mãos e isso me fazia sentir um homem estéril.
Raiva. Ela não desgastava as solas dos sapatos e minhas mãos não tinham personalidade.
Ódio. O homem abria e fechava as narinas. Entornava narina adentro o cheiro de perfume importado, sexo e cigarros de Ana. Não deixou nada para mim. Eu era estéril.
De pau duro, mãos sem cor nem personalidade, estéril, abri bem as narinas, respirei fundo e caminhei com meus sapatos de solas desgastadas para o lado de fora em direção a eles, suguei força de todos os músculos do corpo e juntei catarro e saliva na boca. Ao passar por Ana, escarrei na cara dela e prossegui caminhando calmamente sem olhar pra trás.
Ainda pude ouvir os xingamentos do tal homem. Não controlei meu riso alto e maquiavélico. Continuei andando sem olhar pra trás. Limpei o queixo babado do escarro.
Ana vadia. Nunca poderia ter nascido assim com todos esses atributos positivos. Ana não existe, ela merecia mesmo um escarro.
Olhei para as minhas mãos. Agora elas tinham personalidade, e eu já não era mais um homem estéril.

 Paula Miasato

ANA




Adorava flores. Passava horas a olhar e uma pergunta sem resposta incomodava seus pensamentos: como a natureza havia encontrado um jeito de amoldar com tamanha perfeição uma pétala na outra?
Acreditava que as flores tinham personalidade. Cada qual tinha a sua, singular. Percebia isso através do perfume que exalavam. As mais meigas espalhavam um aroma adocicado, as mal humoradas aromas mais cítricos, e as rosas... Ah! As rosas... Exalavam um perfume único. Elas eram quase perfeitas! Tinham personalidade marcante. Eram belas até quando secas, já sem vida. Perdiam apenas para a delicadeza das margaridas, essas sim alvas, longilíneas, com firmes hastes que sustentam toda a sutileza e a simplicidade de apenas uma única flor de alvas pétalas bucolicamente desenhadas. O perfume, assim como a personalidade, era selvagem. Quando em bandos, formavam uma arquitetura de causar inveja a qualquer outra flor. Toleram o sol, a chuva e a terra seca sem ceder. Flor de personalidade única, apenas os mais sensíveis cediam aos seus encantos naturais. Esse era o caso de Ana.
Ana admirava especialmente as margaridas por serem flores que além de todas essas qualidades ornamentava os campos que rodeavam sua casa desde que nasceu ali, naquela pequena vila de rua ainda não pavimentada. Era com elas que Ana enfeitava a mesa da copa, a mesinha de centro da sala e os cabelos de sua mãe. Fazia isso todos os dias após se levantar e debruçar os cotovelos sobre o batente da janela que dava vista para a rua. Fechava os olhos, aspirava até o último fôlego o perfume das margaridas e só então abria os olhinhos amendoados e presenteava a alma com a sua beleza.  A vizinha da casa ao lado, Dona Nena observava quieta cada gesto. Achava engraçada a careta que Ana fazia ao cheirar as flores. Ria baixinho enquanto varria a calçada de terra batida destruindo os formigueiros que insistiam em emergir e gritava para Ana: “Ei Aninha! Tome tento! Do jeito que cheira as flores vai acabar com o cheiro delas. Vá logo! Colha algumas e leve pra dentro de casa! “ Ana saltava como um sapo e corria descalça diretamente para o canteiro. Saía de lá carregando um ramalhete que mal conseguia segurar. Abraçava as flores, esticava o fino pescoço por cima do ramalhete e arregalava os olhos, tentando enxergar o caminho de volta.
Ana vivia com sua mãe Violeta, mulher guerreira que dedicou os melhores anos de sua vida à criação e educação da filha. Não se importava por ter passado seus anos dourados lavando fraldas, fazendo papinhas e assando biscoitos para vender. A venda dos biscoitos era essencial para o sustento de sua pequena. Sovava a massa enquanto embalava Aninha numa tira amarrada transversalmente pelo corpo. Se chorasse de fome, a amamentava enquanto enrolava os biscoitinhos para colocar na forma. Era só saltar o peito para fora do vestido e ela ficava quietinha. Violeta sorria ao ver a filha sugando seu peito. Ver Ana saudável e gulosa lhe dava mais força ainda para enfrentar a batalha diária da sobrevivência.
Margaridas, biscoitos, Violeta e Ana.
Ana veio ao mundo quando Violeta já não tinha mais esperanças de ser mãe. Um dia aconteceu uma reviravolta em sua solitária vida. Violeta, aos quarenta e cinco anos apaixonou-se por um caixeiro viajante que lhe pediu abrigo em uma noite de torrencial tempestade. Com pena do pobre homem e também timidamente atraída e encantada pela sua fala mansa e doce, inocentemente entregou-lhe todo o seu amor naquela noite. Ele se foi e Violeta embarrigou. As margaridas então brotaram no quintal e por toda a redondeza da casa, apagando o rosa das rosas. Eram tantas, que as roseiras secaram, cedendo lugar a elas. Desde então elas nunca se fizeram ausentes da vida de mãe e filha.
Violeta viveu toda sua vida em meio às margaridas que Ana colhia para enfeitar a casa. Ver mamãe rodeada pelas flores alegrava o coração de Ana, principalmente quando a surpreendia carinhosamente ajeitando as margaridas nos vasos e assoviando uma canção que ela não sabia qual, mas que sempre ouvira, desde pequenina. Fazia isso várias vezes ao dia, antes de sair para a venda com as sacolas cheias de biscoitos e também ao chegar em casa com as sacolas vazias. “O vento despenteia minhas flores”, dizia entre um assovio e outro, “Gosto delas assim, bem ajeitadas”.
Violeta tinha uma mania esquisita de escalpelar o canteiro em frente à casa todos os dias ao sair para a venda. Arrumava um buquê bem bonito, escolhia as maiores e mais cheirosas e entregava à Ana para que carregasse. “Ana, você é quem leva o buquê, certo?”. Sorria. No meio do caminho, passavam pelo cemitério da cidade. Paravam, entravam, e Violeta então juntava o buquê no peito, cheirava longamente as margaridas e só então, de olhos bem fechados, soltava as flores pelo ar, que bailavam no vento e caíam onde o vento deixava. “É para acalentar os mortos”, dizia.
Margarida olhava tudo calada. Não entendia direito, mas achava bonito. Após certo tempo, como aquele gesto passara a se tornar um ritual da mãe, algumas mudas de margaridas brotaram no cemitério e notava-se a propagação delas por todo o terreno dos mortos. Mesmo assim Violeta repetia diariamente seu ritual sem falhar sequer um dia, até que Ana, intrigada, resolveu questioná-la: “... Mas mamãe, porque trazer mais flores pra cá, se o cemitério já está lotado delas? O canteiro em frente de casa já está quase sem flores, enquanto que o cemitério está cada vez mais florido. Vamos levar umas mudas dessas aqui para plantas de volta no canteiro?”. Ana ficava incomodada com o canteiro rarefeito em frente de casa.
Enfim, como quem pergunta quer ouvir uma resposta, esta veio. Violeta olhou bem dentro de seus olhos, pegou uma de suas mãos e disse vagarosa e placidamente: “Não se leva para casa as flores dos mortos. Eles podem sentir falta delas e certamente saberão onde estão e quem as pegou. É muito provável que se isso acontecer, que eles venham até em casa buscá-las. Nunca - se esqueça - disso.” Ana sentiu um arrepio, mas respeitou a fala da mãe e nunca, nunca mais após essa conversa questionou seu ritual, muito menos arrancou sequer uma margarida para replantar no canteiro em frente de sua casa. Seguiram viagem.
Passados quatro anos o calor do forno e a rotina dura de machado, lenha e carreira nas estradinhas para vender os biscoitos nos mercadinhos fizeram de Violeta uma mulher muito doente. Ana a ajudava a manter o sustento, untava as formas com banha e enrolava os biscoitinhos, alimentava as galinhas, limpava o chiqueiro, mas a tarefa pesada de cortar a lenha e sovar a massa ainda ficava por conta de Violeta, pois a pouca idade de Ana não permitia que ela tivesse força suficiente para fazê-los.
Violeta infelizmente ficou muito doente dos pulmões, pois no inverno a alternância entre o calor do forno e o vento gelado e úmido típico da região onde moravam provocou uma grave doença em seus pulmões. Violeta já não comia, emagreceu, tossia, gemia e foi ao lado de um vaso cheio de frescas margaridas, deitada em seu colchão fino, com o cabelo cuidadosamente adornado de margaridas que Violeta morreu, segurando a pequenina mão de sua menina. Morreu sem dizer nada. Apenas respirou fundo o aroma das margaridas e morreu.
Foi enterrada no dia seguinte pela manhã. Ana a arrumou cuidadosamente no caixão cobrindo seu corpo nu de margaridas e ajeitou a mais delicada entre suas gélidas mãos.  Seu túmulo era simples, apenas uma cruz com sua foto colada bem ao centro, abaixo, a data de nascimento e a de falecimento. Os donos das vendas onde Violeta vendia os biscoitos custearam os gastos com o funeral, e Ana então voltou pra casa sozinha.
Após a morte de sua mãe, Ana comia na casa de Dona Nena, sua vizinha, que a chamava todos os dias pelo almoço. Dormia no colchão fino de sua mãe, agora só, no entanto todos os dias ao acordar, continuava a debruçar-se sobre a janela para olhar as margaridas do entorno, como sempre fizera quando Violeta era viva. Fechava os olhos, sentia o aroma e lá ia ela, colher as margaridas para enfeitar a casa. Colocava doze margaridas no vaso da mesa da cozinha, sete no vasinho da mesa de centro e uma, apenas uma ela colocava sobre o fogão. Varria o chão, arrumava um buquê e levava para o cemitério. Todos os dias.
Lá, Ana sentava ao pé da sepultura de sua mãe com as flores nas mãos, alisava a terra batida afastando as folhas secas caídas das árvores, tirava cuidadosamente os chinelos e conversava com Violeta. Falava sobre a casa, dizia que estava cuidando direitinho dela, deixando bem limpinha e florida como sempre, do jeito que ela gostava. Ressaltava que nunca se esquecia da flor de seu cabelo: sempre a colhia e a colocava sobre o fogão, mas que ela não ficava tão bonita quanto no cabelo dela... Dizia também que os porcos, ah... Os porcos ela teve que dar para a vizinha Nena, aquela que fazia almoço para ela todos os dias, e que assim também fez com as galinhas, mas que sempre passava por lá para vê-los e alimentá-los. Fazia questão. E a vizinha... A vizinha era boazinha, gentil, mas não cuidava dos porcos e das galinhas como ela, isso não!
Ana repetia esse ritual de visita ao túmulo da mãe todos os dias. Ficava lá por volta de uma hora, de tanto que falava. Depois se despedia, calçava os chinelos e deixava as margaridas sobre o túmulo de terra.
Alguns meses depois da morte da mãe Ana notou que algumas margaridas fincaram raiz em seu túmulo e começavam a brotar. Achou bonitos os botões prestes a desabrochar. Após esse dia ao invés de apenas deixar as flores sobre o túmulo, passou a plantá-las. Incrivelmente todas as margaridas brotavam. Inicialmente curvavam-se, murchas, entretanto no dia seguinte já estavam firmemente olhando para o céu, alvas, pétalas abertas, folhas verdes.
Ana lembrou-se especialmente daquele dia em que havia questionado sua mãe sobre replantar as margaridas do cemitério no canteiro em frente de casa e também sobre o que havia sido alertada. Sentiu leve arrepio nas costas. Nesse dia ficou pouco tempo sentada em frente ao túmulo, mas conversou com sua mãe sobre o recordado. Disse à ela que, se os mortos realmente sentiriam falta das flores levadas do cemitério e saberiam certamente quem as levou e onde estavam, achava que não faria mal levar apenas uma margarida de seu túmulo para casa...
Seu ritual mudou a partir desse dia. Continuou a visitar o túmulo de Violeta diariamente, no entanto ao invés de levar margaridas passou a ir sem elas. Conversava como sempre com sua mãe. Contava os causos da vila, da vizinhança, da casa arrumada, dos porcos e das galinhas e do quanto sentia sua falta. Despedia-se saudosa, e cuidadosamente arrancava uma margarida do túmulo de Violeta e a levava para casa, saltitante e com o coração cheio de esperança, assoviando a canção de sua mãe.

Paula Miasato