quinta-feira, 31 de maio de 2012

Vício




Fumava com prazer e culpa. Baforava contra a vidraça da janela para ver e não se esquecer da beleza disforme da fumaça do cigarro. "Mea bela culpa".
Que meu pai me perdoe pelo desgosto do filho fumante e fedido. O prazer do cigarro ainda me preenche vazios e ilumina as noites escuras e silentes. Sinto que será assim por um bom tempo, quem sabe por todo o tempo em que eu ainda estiver por aqui vegetando da forma como escolhi, cercado por vidraças sujas de poluição e portas trancadas, longe do mundo lá fora, cárcere voluntário interrompido raramente e somente por visitas sexuais.
Abano o ar com a mão após apagar a bituca. Me remete a adolescência rebelde de fumante oculto. Mais um vício além do fumo, intimamente ligado a ele. Sou um homem de vícios.
Meu cabelo cheira fumo, assim como minhas roupas, meu hálito, meus pelos. A maioria das mulheres não gosta. Reclama na hora do sexo, me fazem tomar banho e escovar os dentes antes de cravar o pênis em seus orifícios melados. Eles fedem tanto quanto eu e isso, somado ao tempo perdido no chuveiro e na pia fazem meu pau cair. 
Agradeço sempre que posso a proteção que me é oferecida pelo odor do fumo nos lençóis, toalhas e cortinas, que encurta o tempo das visitas íntimas. Mulher depois que goza é um saco, despenca a falar da vida como se a gente quisesse mesmo saber da merda do cotidiano fútil delas, como se isso fosse provocar uma maior aproximação e intimidade e quem sabe, reservar um próximo encontro.
Contra isso, nada melhor e mais providencial que uma bela baforada de cigarro, companheiro este que substitui rapidamente e com extrema elegância a lastimável presença feminina após o sexo.
Desta forma permito-me novamente afundar o corpo entre meus lençóis nicotinados, sempre com os olhos voltados para a vidraça da janela fechada que contra a luz natural do amanhecer transforma minhas baforadas em poesia.

(originalmente publicado no blog coletivo De Chaleira)

Paula Miasato Rossi

sexta-feira, 25 de maio de 2012

BRECHÓ DE CARNE





Não era uma puta o que ele queria, mas era uma puta o que lhe restava depois da madrugada de tentativas frustradas. As cinco na manhã depois da mesa forrada de garrafas vazias além da cadeira também vazia a sua frente, a mulatinha parou e perguntou: moço me dá um cigarro?
Devia ter uns 14 anos. Cabelo mafuá curtinho, mini saia encardida curtinha (padrão da moça), chinelos de borracha gasta protegiam um par de pés rachados e feios. Sustentava lábios carnudos e ressequidos, sem batom. Nessa hora já devia estar cheia de porra seca pelo corpo. Era puta. Uma putinha nova encardida viciada de merda e que não usava batom. Fez programa a noite inteira e não tinha grana pra comprar cigarros. Vagabunda.
Enfiou o cigarro na boca dela. Tinha dentes grandes e amarelados. Acendeu. Deu o primeiro trago estendendo um olhar de convite. Mordeu o lábio inferior. A língua branca umedeceu os lábios. Um cheiro que coisa usada, de brechó. Brechó de carne.
Pediu pra pendurar a conta e a puxou pelo braço. Ela veio sem questionar. Na outra mão o cigarro pela metade ainda aceso. Andava estralando os chinelos de borracha. Aquilo o irritava, dava ódio. Ficou feliz. Precisava disso pra fodê-la.
Entre as ruas Caieiras e Assis havia um beco escuro bem apropriado. Não levaria aquela putinha fedida pro quarto dele, mesmo que ele cheirasse a bolor.
Grudou no cabelo mafuá dela pelas costas e colou aquela cara esporrada no muro enquanto erguia a sainha encardida. Com a boca meio espremida pelo muro ela disse: Dez reais moço.
É pra fumar?
Não. É pra cheirar.
A saia erguida liberou o cheiro de merda. A bunda dura, as coxas grossas. A pele grossa. Empinou o rabo.
Fode moço. Fode meu cu.
O pescoço exposto pelo cabelo mafuá curtinho e os calcanhares brancos e rachados. O cheiro de merda. As baratas passeando pelo beco na noite de verão. Resto de comida azeda pelo chão. Alumínio de marmitex. Cachimbos.
Enfiou... Enfiou a mão no bolso, sacou uma nota de vinte reais. Encaixou entre as bandas da “bunda PF”, colou a boca alcoólica no ouvido brilhante de cera e disse: Vai cheirar seu lixo, e me faz um favor, morre.
Largou a mulatinha sem nome ali mesmo no beco e voltou pro boteco.
Não olhou pra trás.
Ah! A loira gelada e fresca... Ela não custava dez reais, nem cheirava a merda.

Paula Miasato Rossi

terça-feira, 8 de maio de 2012

EQUÍVOCO



Minha pequenez reside na insistente reincidência da palavra alheia.
Minha miudez tem dimensões absurdas diante do passado presente no cotidiano.
Sinto raiva.
Amo e sinto ódio.
Minha raiva efervescente mata. A cada dia ela mata parte do respeito e do amor, que aos poucos vai tomando o mesmo tamanho da minha pequenez que é proveniente da reincidência da palavra alheia.
Eu não nasci pra ser mãe, pra conviver com gente (a) normal, pra olhar para horizontes e avistar prédios ao invés de montanhas.
Eu quero cozinhar abóbora sorrindo e fazer suco com amor.
Quero o cheiro de sexo no cobertor, a goma seca no lençol pela manhã.
Eu quero ver estrelas, mesmo que elas estejam mortas.

Paula Miasato

terça-feira, 1 de maio de 2012

Os olhos mais lindos
Mais tristes
Mais castanhos.
Mais absurdos
Mais geminianos
Mais dualísticos
Mais apaixonados
E desapegados.
Olhos de João de Barro.



CÃO VADIO DE LUA


obra: Ricardo Passos da série "Era uma vez uma Rainha"

Três mil anos se passaram e após tanto tempo hoje não reconheço o homem que se deita ao meu lado. Hoje ele passou o dia fora, disse que ia trabalhar, não foi. Voltou quase de madrugada, foi ao quarto, me acordou e selou minha boca com um beijo não correspondido. Olhou pra dentro dos meus olhos e disse: vejo desprezo. Não respondi, era verdade mesmo. Após três mil anos ele só ganhou. Ganhou meu desprezo e indiferença, conquistados arduamente pelo seu esforço voluntário em me fazer sentir um lixo. Foi pra cozinha fazer janta, me acordou novamente e me chamou pra comer. Ele odeia comer sozinho. Egoísta. Há obviamente os que me diriam que isso foi um ato altruísta, afinal ele cozinhou pra mim. Não, ele cozinhou pra ele e odeia comer sozinho. Virei enfeite de mesa e depósito de esperma.
Ele se sente estuprado. Odeia a ideia de ter uma esposa puta, puta mesmo, no sentido de vagabunda, vadia. Ele diz que sou viciada em sexo e que se sente estuprado, mas que gosta, mas que odeia, mas que não quer uma vadia na cama, quer sua mulher, mas adora a vadia que tem na cama. Um geminiano típico. Sempre odiei geminianos, são indecisos, tem duas caras. Idealistas, querem tudo ao mesmo tempo e não se dão conta de que isso não é possível.
Estupro mesmo. Abuso. Sugo até a última gota. Sou vampira de esperma. Não fico sem. Tem que ser macho de verdade pra me aguentar. Tem que levar tapa na cara e cumprir o papel de homem, marido e macho. Cada um com seus vícios. Ele com os dele, eu com os meus.
Cão vadio de rua, que anda sob garoa e luz de lua. Cão vadio de lua. 
Minha solidão é a presença de ausência. Eu não gosto de ouvir a chave na fechadura estando do lado de dentro. Sou egoísta também. Quero estar do lado de fora, não me importa se sozinha ou acompanhada.
Hoje não me importa. Alías, hoje não me importa absolutamente nada do que ontem havia importância. Eu sou assim, observo, ouço, espero e as coisas apenas acontecem. Minhas escolhas estão feitas e não há mais o que decidir, elas tomam rumo próprio diante dos fatos. 
Aquele dia eu devia mesmo ter saído. Do jeito que me vesti, como vagabunda. Vestido colado, decotado e curto, salto alto e fino adornando a cara de vadia que quer sexo (sempre quero). Devia ter feito como planejado. Primeiro homem, primeira esquina, colava a cara no poste e erguia o vestido o suficiente pra que ficasse a vista a calcinha fio dental preta e o anel de coxa. Arrebitava a bunda e oferecia o rabo em pé, grudada no poste. Depois voltava pra casa mordida, arranhada, chupada, descabelada e maquiagem borrada, cheirando a porra de rua, porra de desconhecido, só pra dividir o cheiro com o cão vadio de lua. Ele ia gostar. Ele gosta. Gosta de foder sentindo cheiro de outro macho. O pau fica mais duro ainda e ele goza horrores, me machuca todinha e ainda leva uns tapas na cara enquanto é chamado de corno. Ele chora, mas gosta.
Pra alguém que vive o tempo todo levando tão a sério a presença do número três só há uma saída: a presença de um terceiro, afinal de contas, o número três significa a resolução de conflitos.
A mim cabe essa missão, embora eu tenha levado três mil anos pra perceber.

Paula Miasato