terça-feira, 29 de junho de 2010

GARGALO





Hoje quando eu olho para minha pia cheia de louça suja eu me pergunto "por que? Por que, meu santo deus, eu brigava tanto com a minha irmã, quando era criança para lavar e enxugar louça?".
A gente quase saía no tapa pra enxugar louça. Às vezes pegava minha irmã enxugando louça escondida de mim. Ficava louca de raiva! Xingava! Como ela era capaz de fazer isso comigo? Enxugar louça na MINHA vez de enxugar... ESCONDIDA! Sacanagem...
Minha mãe passava roupa até altas horas. Ligava seu radinho de pilha na lavanderia, colocava no programa do Gil Gomes e ficava lá alisando o pano que a gente ia amassar.
Me lembro que ela "viajava" nas histórias do Gil Gomes. Ele contava casos horríveis, de fundo uma musiquinha que causava suspense na história, e no ápice do conto ele parava para fazer propaganda de remédio. Depois retomava a contação, sempre recontando quase tudo o que havia contado antes da propaganda, depois contava só mais um pouquinho do que ainda não havia sido contado e... Parava para fazer mais uma propaganda de outro remédio diferente. Ela? Alisava o pano. O pano que ia ser amassado.
Ela mandava minha irmã me bater quando eu fazia algo errado. Eu era respondona (ela dizia...), não parava quieta, vivia pregando sustos na minha irmã.
Minha irmã sempre se assustava comigo, dava um pulo e abria o bocão num choro irritantemente alto, inevitável que minha mãe nao ouvisse. Eu sentia um prazer enorme. Sabia que ia apanhar, mas adorava ver minha irmã cair em minhas armadilhas e chorar. Era uma grande realização pra mim. Sentia-me satisfeita, como se tivesse realizado algo impossível de ser realizado.
Houve um dia que eu tive uma idéia mirabolante. Estava passando pelo tanque e vi um pedaço de sabão em pedra cor de laranja já usado, gasto. Parecia com aqueles doces de abóbora que a gente comprava no bar (naquela época a gente comprava doce em bar, e só existia doce mixuruca desse tipo, doce de banana triangular, aquele sorvetinho com uma maria mole em cima que sempre vinha acompanhado por um brinde, geralmente um anel de plástico ou um brinquedinho, doce de batata doce, suspiro quadrado cor de rosa, balas e chicletes ploc e splash),não deu outra! Peguei um papelzinho embrulhei o docinho de sabão (risadas maquiavélicas mentais), exatamente como o homem do bar fazia e levei até ela. Entreguei e disse "olha só o que eu comprei pra você". Ela feliz e lombriguenta logo pegou o doce, nem cheirou, abocanhou e adivinha? Chorou!
Nooooosssssaaaaa! Que satisfação! Eu sabia que ia apanhar, mas confesso que meu prazer era muito maior do que o medo do chinelo. De fato apanhei. Apanhei feliz.
Eu tinha ciúme da minha irmã. Achava que minha mãe e meu pai gostavam mais dela do que de mim. Não sei de onde tirei isso. Cismei. Depois que o tempo passou essa cisma também passou.
Eu gosto dela. Acho que vamos ficar velhinhas ranzinzas e sós, daquelas que passam o resto do tempo que resta a relembrar histórias engraçadas de infância, a lamentar a ausência dos filhos, a rir das cagadas de mãe de primeira viagem (sempre somos, sempre seremos, não importa a quantidade de filhos), incomodadas com a gordura que teima em acumular na cintura fazendo dobras pneumáticas e com as varizes cada vez mais grossas, azuis e doloridas.
Sei que ela sente minha falta hoje, mas tenho certeza que seremos mais unidas amanhã. Não me culpe por isso, sou assim. Tudo a seu tempo.
A minha pia cheia de louça sempre está cheia de louça. Parei de passar minhas roupas, porque sei que vou amassá-las. O pó acumula na estante. Deixe ele lá, é lá que ele deve estar, marcando o tempo.
Meu tempo já está no gargalo da garrafa, passando rápido demais para que eu me preocupe a toa. São apenas detalhes.
Quando a garrafa estiver cheia, peço a alguém que a tampe. Que seja sob seus olhos azuis, que sua mãozinha ainda jovem o faça.
Encerro então esse tempo. Tudo a seu tempo.

PAM

obra: Alan Cassiano
www.alancassiano.com

GARGALO





Hoje quando eu olho para minha pia cheia de louça suja eu me pergunto "por que? Por que, meu santo deus, eu brigava tanto com a minha irmã, quando era criança para lavar e enxugar louça?".
A gente quase saía no tapa pra enxugar louça. Às vezes pegava minha irmã enxugando louça escondida de mim. Ficava louca de raiva! Xingava! Como ela era capaz de fazer isso comigo? Enxugar louça na MINHA vez de enxugar... ESCONDIDA! Sacanagem...
Minha mãe passava roupa até altas horas. Ligava seu radinho de pilha na lavanderia, colocava no programa do Gil Gomes e ficava lá alisando o pano que a gente ia amassar.
Me lembro que ela "viajava" nas histórias do Gil Gomes. Ele contava casos horríveis, de fundo uma musiquinha que causava suspense na história, e no ápice do conto ele parava para fazer propaganda de remédio. Depois retomava a contação, sempre recontando quase tudo o que havia contado antes da propaganda, depois contava só mais um pouquinho do que ainda não havia sido contado e... Parava para fazer mais uma propaganda de outro remédio diferente. Ela? Alisava o pano. O pano que ia ser amassado.
Ela mandava minha irmã me bater quando eu fazia algo errado. Eu era respondona (ela dizia...), não parava quieta, vivia pregando sustos na minha irmã.
Minha irmã sempre se assustava comigo, dava um pulo e abria o bocão num choro irritantemente alto, inevitável que minha mãe nao ouvisse. Eu sentia um prazer enorme. Sabia que ia apanhar, mas adorava ver minha irmã cair em minhas armadilhas e chorar. Era uma grande realização pra mim. Sentia-me satisfeita, como se tivesse realizado algo impossível de ser realizado.
Houve um dia que eu tive uma idéia mirabolante. Estava passando pelo tanque e vi um pedaço de sabão em pedra cor de laranja já usado, gasto. Parecia com aqueles doces de abóbora que a gente comprava no bar (naquela época a gente comprava doce em bar, e só existia doce mixuruca desse tipo, doce de banana triangular, aquele sorvetinho com uma maria mole em cima que sempre vinha acompanhado por um brinde, geralmente um anel de plástico ou um brinquedinho, doce de batata doce, suspiro quadrado cor de rosa, balas e chicletes ploc e splash),não deu outra! Peguei um papelzinho embrulhei o docinho de sabão (risadas maquiavélicas mentais), exatamente como o homem do bar fazia e levei até ela. Entreguei e disse "olha só o que eu comprei pra você". Ela feliz e lombriguenta logo pegou o doce, nem cheirou, abocanhou e adivinha? Chorou!
Nooooosssssaaaaa! Que satisfação! Eu sabia que ia apanhar, mas confesso que meu prazer era muito maior do que o medo do chinelo. De fato apanhei. Apanhei feliz.
Eu tinha ciúme da minha irmã. Achava que minha mãe e meu pai gostavam mais dela do que de mim. Não sei de onde tirei isso. Cismei. Depois que o tempo passou essa cisma também passou.
Eu gosto dela. Acho que vamos ficar velhinhas ranzinzas e sós, daquelas que passam o resto do tempo que resta a relembrar histórias engraçadas de infância, a lamentar a ausência dos filhos, a rir das cagadas de mãe de primeira viagem (sempre somos, sempre seremos, não importa a quantidade de filhos), incomodadas com a gordura que teima em acumular na cintura fazendo dobras pneumáticas e com as varizes cada vez mais grossas, azuis e doloridas.
Sei que ela sente minha falta hoje, mas tenho certeza que seremos mais unidas amanhã. Não me culpe por isso, sou assim. Tudo a seu tempo.
A minha pia cheia de louça sempre está cheia de louça. Parei de passar minhas roupas, porque sei que vou amassá-las. O pó acumula na estante. Deixe ele lá, é lá que ele deve estar, marcando o tempo.
Meu tempo já está no gargalo da garrafa, passando rápido demais para que eu me preocupe a toa. São apenas detalhes.
Quando a garrafa estiver cheia, peço a alguém que a tampe. Que seja sob seus olhos azuis, que sua mãozinha ainda jovem o faça.
Encerro então esse tempo. Tudo a seu tempo.

PAM

obra: Alan Cassiano
www.alancassiano.com

quarta-feira, 23 de junho de 2010





Eu sei,
Tudo por acaso
Tudo por atraso
Mera distração
Eu sei
Por impaciência
Por obediência
Pura intuição
Qualquer dia, qualquer hora
Tempo e dimensão
O futuro foi agora, tudo é invenção
Ninguém vai saber de nada
E eu sei
Pelo sentimento,
Pelo envolvimento,
Pelo coração
Eu sei
Pela madrugada
Pela emboscada
Pela contramão
Qualquer dia, qualquer hora
Tempo e dimensão
O futuro foi agora, tudo é invenção
Ninguém vai saber de nada
E eu sei
Por qualquer poesia
Por qualquer magia
Por qualquer razão
Eu sei,
Tudo por acaso
Tudo por atraso
Mera diversão

Lenine




Eu sei,
Tudo por acaso
Tudo por atraso
Mera distração
Eu sei
Por impaciência
Por obediência
Pura intuição
Qualquer dia, qualquer hora
Tempo e dimensão
O futuro foi agora, tudo é invenção
Ninguém vai saber de nada
E eu sei
Pelo sentimento,
Pelo envolvimento,
Pelo coração
Eu sei
Pela madrugada
Pela emboscada
Pela contramão
Qualquer dia, qualquer hora
Tempo e dimensão
O futuro foi agora, tudo é invenção
Ninguém vai saber de nada
E eu sei
Por qualquer poesia
Por qualquer magia
Por qualquer razão
Eu sei,
Tudo por acaso
Tudo por atraso
Mera diversão

Lenine





Meu pai sempre foi uma pessoa reservada. Talvez pela calosidade provocada durante o percurso da vida. Falava pouco. Saía cedo para o trabalho (entrava às 07h23 min) e voltava apenas no final da tarde, quase na hora do jantar (saía às 17h).
Chegava religiosamente no mesmo horário. Esperávamos dentro de casa, apoiadas no beiral da janela. Ao vê-lo descer a rua, saíamos correndo ao encontro dele e só então entrávamos para jantar.
Não sei ao certo o que nos tornava tão próximos. Nós quase não conversávamos, tínhamos pouco contato, pouco sabia dele, de suas angústias, alegrias, preocupações, mas éramos muito ligados, ligados por um fio inexplicavelmente resistente e invisível.
Ele não permitia que conversássemos durante o jantar. Se alguém se atrevesse a puxar conversa ele logo dizia: Na hora que se come não se fala. Calávamos.
Com minha mãe era diferente. Passávamos o dia todo juntas e ela vivia me dando bronca, porque eu era muito danada. Ela se agarrava em meus cabelos, chacoalhava minha cabeça até que eu ficasse tonta e gritava: Você me deixa looooooouca! Tudo bem, eu a deixava louca mesmo, não posso negar. Eu fazia questão de irritá-la até que ela se descontrolasse a ponto de fazer de minha cabeça uma omelete.
Adorava agarrá-la quando estava lavando roupa no tanque. Ia por trás, quietinha, grudava na cintura dela e beijava seu pescoço, depois fazia cosquinhas. Ela me ensaboava toda com as mãos molhadas. Eu jogava espuma no nariz dela e saía correndo.
Minha mãe era meu saco de pancadas e eu o dela.
Meu pai era o cara que era distante e ao mesmo tempo próximo, que acordava a gente arrancando o cobertor aos finais de semana para ir nadar (odiava isso).
Meu pai fumava, mas não queria que a gente fumasse.
Um dia ele parou de fumar. Eu não.
Um dia ele estava tomando refrigerante e riu. Nesse dia eu pude conhecer um pouco melhor sua história. Ele falou pouco, rapidamente e logo parou. Nunca mais tocou no assunto e eu também não perguntei.
Ele nos contou que quando era criança, ele e seus sete irmãos, eram muito pobres. Disse que sua mãe e seu pai vieram para o Brasil fugidos da Guerra. Trabalhavam na roça (dos outros), e que só tomavam refrigerantes uma vez ao ano, no Natal, quando seu pai (meu avô) comprava apenas uma garrafinha de refrigerante para cada um dos filhos. Era a única garrafinha do ano, e a grande diversão desse dia não era a galinha assada cedida pelo patrão que posava na mesa para ser devorada, coisa que não acontecia durante o ano todinho, mas sim o refrigerante, o tal refrigerante pelo qual esperavam o ano todo para tomar e fazer competição de arroto. Contou-nos também que houve um dia que um balão caiu na roça e tudo pegou fogo. Dizia que não tiveram tempo para salvar nada. Com o olhar mais triste do mundo disse: tudo queimou, porco, galinha, horta, casa e até o cachorrinho que estava preso na corrente que não foi possível soltá-lo a tempo para que pudesse escapar.
Contou que ficou de pés descalços no chão de terra, à noite, olhando o fogo tomar conta de tudo matando os bichos aos poucos, que gritavam uma sinfonia dolorosa ao serem consumidos pelo fogo.
Minha mãe era escandalosa, caprichosa, queria tudo do jeito dela. Uma mania de limpeza que me deixou marcas. Amo o pó, graças a ela. Filha de portugueses, carioca, vaidosa, mantinha um arsenal de produtos de beleza e maquiagem.
Meu pai a presenteava com jóias. Ela só usava jóia. Morreu com elas e foi enterrada de unhas recém pintadas. Contraste entre esmalte fresco e carne costurada, que tentávamos esconder debaixo das golas de sua blusa. Ela ficou roxa, teve hemorragia interna e o sangue se espalhou por toda parte de baixo de seu corpo deitado.
Era uma mulher apaixonada. Dizia que se um dia se separasse de papai não iria criar a gente. Que a gente ficasse com ele. Ela ficaria livre.
Ela queria paz e teve, lá do jeito dela. Procurou de forma errada e encontrou uma paz incômoda.
Não a culpo. Nem meu pai. A gente não recebe manual de instruções quando tem filho. Vai criando do jeito que acha que é certo e noventa por cento das vezes erra. Isso é imutável.
Daqui a três anos terei a mesma idade que minha mãe tinha quando morreu. Eu a achava velha, mas ela não era, apenas tinha mais cabelos brancos do que eu.
Meu pai está com a pele opaca (a renovação celular um dia para). Vejo nele meus traços, e acho que ele os vê em mim. Ele acha que vai morrer. Não fala sobre isso, mas eu sei que ele pensa. Tem umas atitudes esquisitas, fica falando toda hora para enterrá-lo em São Paulo, faz questão de ser transportado pelo taxista amigo dele (caso ele não morra antes dele), não quer discórdia entre as filhas e a mulher dele.
A mulher dele é uma japa bem japa. Chata, mas cuida dele. Cozinha, lava, passa, faz companhia. Foi ele quem a escolheu, mas ela é chata. Faz a política da boa vizinhança, mesmo assim continua sendo chata.
Ela gosta de pão de queijo oco. Onde já se viu? Isso é inadmissível! Teima em dizer que o pão de queijo oco dela é melhor do que o pão de queijo tipicamente mineiro que eu faço. Ahhhhhhhhhhh! Me poupe.
Essa família é mesmo estranha. Todo mundo longe fazendo de conta que está perto. Telefonam um para o outro para dizer oi, porque não há assunto além do oi, a gente se perdeu, cada um tomou seu rumo e eles simplesmente não admitem isso. Sentem-se na obrigação de telefonar. Bom para as empresas de telefonia, eu não gasto grana com isso.
A gente cria filho para o mundo, não pra gente. O mundo espera que a gente faça isso.
Aliás, hoje o mundo até prefere que não façamos mais filhos. Até ele já se encheu dessa missão de acolhimento.
Bicho teimoso o homem. Vê mas não enxerga. Vive num faz de conta.
Não é mais fácil ser espontâneo?

PAM





Meu pai sempre foi uma pessoa reservada. Talvez pela calosidade provocada durante o percurso da vida. Falava pouco. Saía cedo para o trabalho (entrava às 07h23 min) e voltava apenas no final da tarde, quase na hora do jantar (saía às 17h).
Chegava religiosamente no mesmo horário. Esperávamos dentro de casa, apoiadas no beiral da janela. Ao vê-lo descer a rua, saíamos correndo ao encontro dele e só então entrávamos para jantar.
Não sei ao certo o que nos tornava tão próximos. Nós quase não conversávamos, tínhamos pouco contato, pouco sabia dele, de suas angústias, alegrias, preocupações, mas éramos muito ligados, ligados por um fio inexplicavelmente resistente e invisível.
Ele não permitia que conversássemos durante o jantar. Se alguém se atrevesse a puxar conversa ele logo dizia: Na hora que se come não se fala. Calávamos.
Com minha mãe era diferente. Passávamos o dia todo juntas e ela vivia me dando bronca, porque eu era muito danada. Ela se agarrava em meus cabelos, chacoalhava minha cabeça até que eu ficasse tonta e gritava: Você me deixa looooooouca! Tudo bem, eu a deixava louca mesmo, não posso negar. Eu fazia questão de irritá-la até que ela se descontrolasse a ponto de fazer de minha cabeça uma omelete.
Adorava agarrá-la quando estava lavando roupa no tanque. Ia por trás, quietinha, grudava na cintura dela e beijava seu pescoço, depois fazia cosquinhas. Ela me ensaboava toda com as mãos molhadas. Eu jogava espuma no nariz dela e saía correndo.
Minha mãe era meu saco de pancadas e eu o dela.
Meu pai era o cara que era distante e ao mesmo tempo próximo, que acordava a gente arrancando o cobertor aos finais de semana para ir nadar (odiava isso).
Meu pai fumava, mas não queria que a gente fumasse.
Um dia ele parou de fumar. Eu não.
Um dia ele estava tomando refrigerante e riu. Nesse dia eu pude conhecer um pouco melhor sua história. Ele falou pouco, rapidamente e logo parou. Nunca mais tocou no assunto e eu também não perguntei.
Ele nos contou que quando era criança, ele e seus sete irmãos, eram muito pobres. Disse que sua mãe e seu pai vieram para o Brasil fugidos da Guerra. Trabalhavam na roça (dos outros), e que só tomavam refrigerantes uma vez ao ano, no Natal, quando seu pai (meu avô) comprava apenas uma garrafinha de refrigerante para cada um dos filhos. Era a única garrafinha do ano, e a grande diversão desse dia não era a galinha assada cedida pelo patrão que posava na mesa para ser devorada, coisa que não acontecia durante o ano todinho, mas sim o refrigerante, o tal refrigerante pelo qual esperavam o ano todo para tomar e fazer competição de arroto. Contou-nos também que houve um dia que um balão caiu na roça e tudo pegou fogo. Dizia que não tiveram tempo para salvar nada. Com o olhar mais triste do mundo disse: tudo queimou, porco, galinha, horta, casa e até o cachorrinho que estava preso na corrente que não foi possível soltá-lo a tempo para que pudesse escapar.
Contou que ficou de pés descalços no chão de terra, à noite, olhando o fogo tomar conta de tudo matando os bichos aos poucos, que gritavam uma sinfonia dolorosa ao serem consumidos pelo fogo.
Minha mãe era escandalosa, caprichosa, queria tudo do jeito dela. Uma mania de limpeza que me deixou marcas. Amo o pó, graças a ela. Filha de portugueses, carioca, vaidosa, mantinha um arsenal de produtos de beleza e maquiagem.
Meu pai a presenteava com jóias. Ela só usava jóia. Morreu com elas e foi enterrada de unhas recém pintadas. Contraste entre esmalte fresco e carne costurada, que tentávamos esconder debaixo das golas de sua blusa. Ela ficou roxa, teve hemorragia interna e o sangue se espalhou por toda parte de baixo de seu corpo deitado.
Era uma mulher apaixonada. Dizia que se um dia se separasse de papai não iria criar a gente. Que a gente ficasse com ele. Ela ficaria livre.
Ela queria paz e teve, lá do jeito dela. Procurou de forma errada e encontrou uma paz incômoda.
Não a culpo. Nem meu pai. A gente não recebe manual de instruções quando tem filho. Vai criando do jeito que acha que é certo e noventa por cento das vezes erra. Isso é imutável.
Daqui a três anos terei a mesma idade que minha mãe tinha quando morreu. Eu a achava velha, mas ela não era, apenas tinha mais cabelos brancos do que eu.
Meu pai está com a pele opaca (a renovação celular um dia para). Vejo nele meus traços, e acho que ele os vê em mim. Ele acha que vai morrer. Não fala sobre isso, mas eu sei que ele pensa. Tem umas atitudes esquisitas, fica falando toda hora para enterrá-lo em São Paulo, faz questão de ser transportado pelo taxista amigo dele (caso ele não morra antes dele), não quer discórdia entre as filhas e a mulher dele.
A mulher dele é uma japa bem japa. Chata, mas cuida dele. Cozinha, lava, passa, faz companhia. Foi ele quem a escolheu, mas ela é chata. Faz a política da boa vizinhança, mesmo assim continua sendo chata.
Ela gosta de pão de queijo oco. Onde já se viu? Isso é inadmissível! Teima em dizer que o pão de queijo oco dela é melhor do que o pão de queijo tipicamente mineiro que eu faço. Ahhhhhhhhhhh! Me poupe.
Essa família é mesmo estranha. Todo mundo longe fazendo de conta que está perto. Telefonam um para o outro para dizer oi, porque não há assunto além do oi, a gente se perdeu, cada um tomou seu rumo e eles simplesmente não admitem isso. Sentem-se na obrigação de telefonar. Bom para as empresas de telefonia, eu não gasto grana com isso.
A gente cria filho para o mundo, não pra gente. O mundo espera que a gente faça isso.
Aliás, hoje o mundo até prefere que não façamos mais filhos. Até ele já se encheu dessa missão de acolhimento.
Bicho teimoso o homem. Vê mas não enxerga. Vive num faz de conta.
Não é mais fácil ser espontâneo?

PAM

sexta-feira, 18 de junho de 2010





Não crio raízes por onde passo. Ando leve, mal toco o chão.
O melhor do trabalho é ser itinerante. Perceber isso provoca a insistência positiva de sempre procurar algo novo, conhecer espaços, lugares, pessoas. Além desta percepção, incorporar na mente e na alma que tudo passa, porque passa.
O apego é burrice. Perguntam-me se volto. Não, não volto, a não ser que a vida me leve à isso, afinal de contas, o mundo é redondo.
Enquanto isso eu vou. Sem apego, tropeçando e adorando tudo isso.
A gente se vê por aí.
O mundo é redondo.

PAM




Não crio raízes por onde passo. Ando leve, mal toco o chão.
O melhor do trabalho é ser itinerante. Perceber isso provoca a insistência positiva de sempre procurar algo novo, conhecer espaços, lugares, pessoas. Além desta percepção, incorporar na mente e na alma que tudo passa, porque passa.
O apego é burrice. Perguntam-me se volto. Não, não volto, a não ser que a vida me leve à isso, afinal de contas, o mundo é redondo.
Enquanto isso eu vou. Sem apego, tropeçando e adorando tudo isso.
A gente se vê por aí.
O mundo é redondo.

PAM

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Confira as novidades de 15 de junho de 2010:

Contos de Coral.:
- A sinuca (Silvio Silva)
- Violinos e britadeiras (Fabbio Cortez)
- Novidade que chega no sertão... (Eurico de Andrade)
- Entre choro e palavras não entendidas (Ricardo A de Lima)

Veneno Crônico.:
- Bola ideológica (Hélio Consolaro)
- Os Anjos da bola (Assis)
- O Cachorro Zico e a Copa de 1986 (Luciana do Rocio Mallon)

Cobra Cega.:
Todo dia um poema diferente

A Boca do Crocodilo.:
Todos os dias, 5 citações diferentes:



"A esperança é um estimulante vital muito superior à sorte" (Friedrich Nietzsche)

A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com
Confira as novidades de 15 de junho de 2010:

Contos de Coral.:
- A sinuca (Silvio Silva)
- Violinos e britadeiras (Fabbio Cortez)
- Novidade que chega no sertão... (Eurico de Andrade)
- Entre choro e palavras não entendidas (Ricardo A de Lima)

Veneno Crônico.:
- Bola ideológica (Hélio Consolaro)
- Os Anjos da bola (Assis)
- O Cachorro Zico e a Copa de 1986 (Luciana do Rocio Mallon)

Cobra Cega.:
Todo dia um poema diferente

A Boca do Crocodilo.:
Todos os dias, 5 citações diferentes:



"A esperança é um estimulante vital muito superior à sorte" (Friedrich Nietzsche)

A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com
CONVERSA DE POESIA NA CASA DA PALAVRA
Os poetas e editores da Revista A Cigarra, Jurema Barreto de Souza e
Zhô Bertholini, coordenarão na Casa da Palavra o Conversa de Poesia
onde cada autor apresentará seu mais recente livro, falará sobre a
trajetória poética, o processo criativo e interagindo com os leitores.
Vagamundo - Zhô Bertholini (R$ 5,00)
Policromia - Jurema Barreto de Souza (R$ 15,00)

Dia 18 de junho, sexta-feira ,
Horário: 19h

Local do Evento:
Casa da Palavra
Pça do Carmo 171, Centro,Santo André – fone – 49927218
CONVERSA DE POESIA NA CASA DA PALAVRA
Os poetas e editores da Revista A Cigarra, Jurema Barreto de Souza e
Zhô Bertholini, coordenarão na Casa da Palavra o Conversa de Poesia
onde cada autor apresentará seu mais recente livro, falará sobre a
trajetória poética, o processo criativo e interagindo com os leitores.
Vagamundo - Zhô Bertholini (R$ 5,00)
Policromia - Jurema Barreto de Souza (R$ 15,00)

Dia 18 de junho, sexta-feira ,
Horário: 19h

Local do Evento:
Casa da Palavra
Pça do Carmo 171, Centro,Santo André – fone – 49927218

segunda-feira, 14 de junho de 2010

MORFINA




Cheguei, sentei no mesmo canto do sofá, como de costume e esperei.
Entrei. Sentei e disse:
-Oi, tudo bem?
-Oi, tudo bem sim, fora a dor horrivel que estou sentindo. Acho que é vesícula. Não repare se eu não responder suas perguntas, ou ficar pasmada. É que tomei uma dose de morfina para aguentar a dor. É o único remédio que faz passar minha dor.
-Tá, tranquilo.
Eu já estava acostumada a vê-la dopada de morfina. Durante os mais de dez anos de convivência presenciei diversos tipos de dores, todas controladas com doses de morfina.
Ela riu:
-Que merda de vesícula! Não sei porque a gente tem isso.
-É... Se cuida. (Odeio quando as pessoas falam isso pra mim.)
-Mas eu ainda estou fumando.
-Ah! Fumar é bom demais! Eu já passei por diversas tentativas de "largar o vício", todas frustradas. Também continuo fumando.
-É... fumar é o único prazer que tenho. Meu ÚNICO, íntimo prazer.
-É... todo mundo fala dos males do fumo, mas nínguem fala dos benefícios. É companhia, é prazeroso. Pra mim faz bem.
-Lógico! Imagine eu, toda fodida de dor, a base de morfina, se não pudesse fumar um cigarrinho...
-Punk. Foda é esse lance de ter que ficar se policiando quando fuma. Depois dessa tal lei anti-fumo, a gente não pode mais nem fumar no ponto de ônibus coberto. Tem que abrir o guarda chuva e fumar de ladinho... Aliás, guarda chuva é considerado uma cobertura, não? Será que é permitido fumar debaixo do guarda chuva?
-Ah! Vamo combiná, né? Essa lei anti-fumo é totalmente inconstitucional! Sim! Inconstitucional! Perante a Constituição, temos o direito de ir e vir, e além disso, o direito de escolha, portanto essa lei não vale nada. É que ninguém abre um processo, porque se abrisse, com certeza ganharia a causa. Veja só. Outro dia estava eu na calçada em frente a uma lanchonete de uma amiga, fumando. DO LADO DE FORA, NA CALÇADA. Aí um cara que estava sentado lá no fundo reclamou do cheiro do MEU cigarro, que estava lá, DO LADO DE FORA. Minha amiga, dona do estabelecimento, chegou em mim toda cheia de dedos, morrendo de vergonha e pediu que eu apagasse meu cigarro, pois estava incomodando seu cliente. Eu olhei bem pra ele, sozinho na mesa forrada de garrafas de cerveja vazias e disse em tom alto e claro: "Engraçado, ele está incomodado com a fumaça do meu cigarro? Bebida é uma coisa que me incomoda ao extremo, nem por isso pedi a ele que parasse de encher a cara". Todos os outros clientes olharam pra ele e riram. Ele se envergonhou, se acabrunhou e se aquietou. Antes de ir embora, passei no caixa e pedi que servissem um rabo de ralo pra ele, por minha conta. Acho que rabo de galo é uma bebida forte, não? Pelo que sei é a mais forte que conheço. Odeio bebida.
Rachei o bico.
-VocÊ vai voltar ao trabalho ou vai pra casa?
-Sinceramente? Estou louca de vontade de ir pra casa dormir.
-Eu também, pena que não posso.
-Falou. Se cuida, heim? (sei que fui cruel..)
Peguei a declaração e fui embora.
Morfina. Quanta morfina.


PAM ORBACAM

MORFINA




Cheguei, sentei no mesmo canto do sofá, como de costume e esperei.
Entrei. Sentei e disse:
-Oi, tudo bem?
-Oi, tudo bem sim, fora a dor horrivel que estou sentindo. Acho que é vesícula. Não repare se eu não responder suas perguntas, ou ficar pasmada. É que tomei uma dose de morfina para aguentar a dor. É o único remédio que faz passar minha dor.
-Tá, tranquilo.
Eu já estava acostumada a vê-la dopada de morfina. Durante os mais de dez anos de convivência presenciei diversos tipos de dores, todas controladas com doses de morfina.
Ela riu:
-Que merda de vesícula! Não sei porque a gente tem isso.
-É... Se cuida. (Odeio quando as pessoas falam isso pra mim.)
-Mas eu ainda estou fumando.
-Ah! Fumar é bom demais! Eu já passei por diversas tentativas de "largar o vício", todas frustradas. Também continuo fumando.
-É... fumar é o único prazer que tenho. Meu ÚNICO, íntimo prazer.
-É... todo mundo fala dos males do fumo, mas nínguem fala dos benefícios. É companhia, é prazeroso. Pra mim faz bem.
-Lógico! Imagine eu, toda fodida de dor, a base de morfina, se não pudesse fumar um cigarrinho...
-Punk. Foda é esse lance de ter que ficar se policiando quando fuma. Depois dessa tal lei anti-fumo, a gente não pode mais nem fumar no ponto de ônibus coberto. Tem que abrir o guarda chuva e fumar de ladinho... Aliás, guarda chuva é considerado uma cobertura, não? Será que é permitido fumar debaixo do guarda chuva?
-Ah! Vamo combiná, né? Essa lei anti-fumo é totalmente inconstitucional! Sim! Inconstitucional! Perante a Constituição, temos o direito de ir e vir, e além disso, o direito de escolha, portanto essa lei não vale nada. É que ninguém abre um processo, porque se abrisse, com certeza ganharia a causa. Veja só. Outro dia estava eu na calçada em frente a uma lanchonete de uma amiga, fumando. DO LADO DE FORA, NA CALÇADA. Aí um cara que estava sentado lá no fundo reclamou do cheiro do MEU cigarro, que estava lá, DO LADO DE FORA. Minha amiga, dona do estabelecimento, chegou em mim toda cheia de dedos, morrendo de vergonha e pediu que eu apagasse meu cigarro, pois estava incomodando seu cliente. Eu olhei bem pra ele, sozinho na mesa forrada de garrafas de cerveja vazias e disse em tom alto e claro: "Engraçado, ele está incomodado com a fumaça do meu cigarro? Bebida é uma coisa que me incomoda ao extremo, nem por isso pedi a ele que parasse de encher a cara". Todos os outros clientes olharam pra ele e riram. Ele se envergonhou, se acabrunhou e se aquietou. Antes de ir embora, passei no caixa e pedi que servissem um rabo de ralo pra ele, por minha conta. Acho que rabo de galo é uma bebida forte, não? Pelo que sei é a mais forte que conheço. Odeio bebida.
Rachei o bico.
-VocÊ vai voltar ao trabalho ou vai pra casa?
-Sinceramente? Estou louca de vontade de ir pra casa dormir.
-Eu também, pena que não posso.
-Falou. Se cuida, heim? (sei que fui cruel..)
Peguei a declaração e fui embora.
Morfina. Quanta morfina.


PAM ORBACAM



Levai-me por piedade onde a vertigem
com a razão me arranque a memória.
Por piedade!

Tenho medo de ficar
com a minha dor a sós!



Levai-me por piedade onde a vertigem
com a razão me arranque a memória.
Por piedade!

Tenho medo de ficar
com a minha dor a sós!


A boca
Eugénio de Andrade



A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

que pode uma boca
esperar
senão outra boca?

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.


A boca
Eugénio de Andrade



A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

que pode uma boca
esperar
senão outra boca?

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Contos da Meia Noite - Eu estava ali deitado

Contos da Meia Noite - Eu estava ali deitado




Álvaro de Campos



Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.



Álvaro de Campos



Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

domingo, 6 de junho de 2010


SENTE



Tem gosto de vinho
Cheiro de café coado
Soa tempestade.
De frente, flor
De costas, espinho.
É gelado que queima.
É bicho de duas cabeças.
Digere, na dose certa.
Em demasia dá congestão.
É tampão de olho
Protetor auricular.
Produz líquidos
Provoca gula.
Traz paz e dor
Vento que derruba o pensamento.
Dilata poros,
Traz hálito quente,
Palavras incoerentes.
Deixa insana a mente.
Quero mais.

PAM

SENTE



Tem gosto de vinho
Cheiro de café coado
Soa tempestade.
De frente, flor
De costas, espinho.
É gelado que queima.
É bicho de duas cabeças.
Digere, na dose certa.
Em demasia dá congestão.
É tampão de olho
Protetor auricular.
Produz líquidos
Provoca gula.
Traz paz e dor
Vento que derruba o pensamento.
Dilata poros,
Traz hálito quente,
Palavras incoerentes.
Deixa insana a mente.
Quero mais.

PAM

FLORES



São flores.
Seus aromas seduzem
Suas cores encantam
Porém, o que me alucina nelas
É a perfeição da nuance das pétalas
É a meticulosidade da sobreposição delas
É a delicadeza do seu tempo.
Tudo milimetricamente planejado.
Elas morrem... No seu tempo.
Surge sempre outro botão
Aveludado, no chão
Adornado pelas pélatas
da flor que cumpriu seu tempo.
Não é preciso fazer nada,
Falar nada,
Tocar em nada.
Assim será também com o botão.
Ele terá o seu tempo.
E isso torna as flores eternas.
A solidão e o silêncio.

PAM

FLORES



São flores.
Seus aromas seduzem
Suas cores encantam
Porém, o que me alucina nelas
É a perfeição da nuance das pétalas
É a meticulosidade da sobreposição delas
É a delicadeza do seu tempo.
Tudo milimetricamente planejado.
Elas morrem... No seu tempo.
Surge sempre outro botão
Aveludado, no chão
Adornado pelas pélatas
da flor que cumpriu seu tempo.
Não é preciso fazer nada,
Falar nada,
Tocar em nada.
Assim será também com o botão.
Ele terá o seu tempo.
E isso torna as flores eternas.
A solidão e o silêncio.

PAM

AUTOMATIZE



Quando se está só (pelo menos comigo é assim...) a cabeça da gente vira um amontoado de coisas, e eu odeio essa autonomia que ela tem de ficar revirando os cestos de roupas sujas cerebrais.
São nesses momentos que a gente se pega relembrando coisas, refletindo e viajando sobre elas.
Hoje mesmo eu estava pensando... Estou na maior fase do foda-se. Quando vi, já falei. Sem mesmo perceber, já reagi. E assim caminho, naturalmente na tecla do foda-se automático.
Pouco me importa se tenho que fazer pose, ter postura. Foda-se.
Estou nem aí se passo na praça Roosevelt e dou de cara com o Marcelo Rubens Paiva no maior papo cabeça na calçada com sua super hiper mega cadeira de rodas caríssima com uma garotinha que deveria estar na cama aquelas horas. Passo direto. Foda-se.
VocÊ não não gosta de mim? Foda-se.
Eu lhe incomodo? Foda-se.
Falei. Não gostou? Foda-se.
Fiz. Irritei? Foda-se.
Pouco me importa também se aquela grandona lá da prefeitura não quer me ver nem pintada de ouro na frente porque acredita que fiz coisas que não fiz. Foda-se.
Está incomodado com a fumaça do meu cigarro? Foda-se, afinal é VOCÊ que está incomodado, e não eu, portanto o problema é SEU.
Fez a escolha errada? Foda-se.
Fiz a escolha errada? Ah... foda-se também. Vivendo e aprendendo.
Tenho poucos amigos? Ah! Um grande foda-se. A gente na maoria das vezes se decepciona com eles.
Esse lance do foda-se é ótimo. Um brinde ao foda-se, graças à ele têm se a oportunidade de estar sempre bem.
Viva o foda-se! Automatize.

PAM

AUTOMATIZE



Quando se está só (pelo menos comigo é assim...) a cabeça da gente vira um amontoado de coisas, e eu odeio essa autonomia que ela tem de ficar revirando os cestos de roupas sujas cerebrais.
São nesses momentos que a gente se pega relembrando coisas, refletindo e viajando sobre elas.
Hoje mesmo eu estava pensando... Estou na maior fase do foda-se. Quando vi, já falei. Sem mesmo perceber, já reagi. E assim caminho, naturalmente na tecla do foda-se automático.
Pouco me importa se tenho que fazer pose, ter postura. Foda-se.
Estou nem aí se passo na praça Roosevelt e dou de cara com o Marcelo Rubens Paiva no maior papo cabeça na calçada com sua super hiper mega cadeira de rodas caríssima com uma garotinha que deveria estar na cama aquelas horas. Passo direto. Foda-se.
VocÊ não não gosta de mim? Foda-se.
Eu lhe incomodo? Foda-se.
Falei. Não gostou? Foda-se.
Fiz. Irritei? Foda-se.
Pouco me importa também se aquela grandona lá da prefeitura não quer me ver nem pintada de ouro na frente porque acredita que fiz coisas que não fiz. Foda-se.
Está incomodado com a fumaça do meu cigarro? Foda-se, afinal é VOCÊ que está incomodado, e não eu, portanto o problema é SEU.
Fez a escolha errada? Foda-se.
Fiz a escolha errada? Ah... foda-se também. Vivendo e aprendendo.
Tenho poucos amigos? Ah! Um grande foda-se. A gente na maoria das vezes se decepciona com eles.
Esse lance do foda-se é ótimo. Um brinde ao foda-se, graças à ele têm se a oportunidade de estar sempre bem.
Viva o foda-se! Automatize.

PAM

sábado, 5 de junho de 2010


Mais uma vez



Insônia mais uma vez.
Durante o dia minha cabeça parece não funcionar direito pra quase nada, porém quando deito em minha cama e penso comigo mesma: "vou dormir"... F O D E U!
Meu cérebro começa a girar como a hélice de um helicóptero, tuiiiiiimmmmmmmmm... Passa tanta coisa, pela minha cabeça, tudo tão misturado... Parece um vômito! Bláhhh, Huugggooo!
Enfim, então inicio meu processo de concentração e separação de idéias (já que sei que não vou conseguir dormir mesmo...).
Partindo do princípio da minha comparação (vômito) separemos o líquido do sólido primeiro...
Na verdade, durante o dia há tanto barulho, informação, obrigação, responsabilidade que não resta tempo para "a gavetinha do coração" abrir. Pobrezinha... Fica esquecida, tímida, fechadinha (embora o coração sinta as emoções lá dentro se mexendo, cutucando, querendo sair...). Então chega a noite e ela não abre. Ela definitivamente ESCANCARA, revoltada, solta as amarras e soca todos os neurônios como quem diz: “porra, meu, será que agora dá”? Hei! Sou eu! EU!
E não pensem que isso é fácil assim não. Até chegar à idéia principal demora um bom tempo, porque tenho primeiro que descobrir o que é que "tá pegando". Feito isto, começo a compreender os fragmentos e flashes "vomitados".
É um quebra-cabeça. Junta aqui, separa ali, junta de novo, separa de novo (haja folha!). Risca ali, acrescenta aqui... (sou perfeccionista neste sentido). É um árduo trabalho. Quando percebo lá se foi meio caderno riscado pra sair em média uma folha, uma folha e meia, às vezes nem isso.
Mas sai. Ufa! Que alívio! Parece mesmo que sofri toda a dor de um parto, as contrações, a dilatação até chegar à expulsão final da cria, que ainda deve ser limpa, amamentada e acalentada.
Mas nasceu de mim... Fruto meu... Bom ou não, no que vai dar, Whatever!
Ah! Detalhe: não se esqueçam que a gestação leva tempo. Não é como fritar pastel, um atrás do outro.
É parto mesmo! Exige todo um processo. Processo de vivência, existência concretismo e abstracionismo.
Bem...
Acho que é mais ou menos isso.
Preciso dormir...
Preciso dormir...
Hoje, sem dor de parto.
Ao menos hoje.

PAM

Mais uma vez



Insônia mais uma vez.
Durante o dia minha cabeça parece não funcionar direito pra quase nada, porém quando deito em minha cama e penso comigo mesma: "vou dormir"... F O D E U!
Meu cérebro começa a girar como a hélice de um helicóptero, tuiiiiiimmmmmmmmm... Passa tanta coisa, pela minha cabeça, tudo tão misturado... Parece um vômito! Bláhhh, Huugggooo!
Enfim, então inicio meu processo de concentração e separação de idéias (já que sei que não vou conseguir dormir mesmo...).
Partindo do princípio da minha comparação (vômito) separemos o líquido do sólido primeiro...
Na verdade, durante o dia há tanto barulho, informação, obrigação, responsabilidade que não resta tempo para "a gavetinha do coração" abrir. Pobrezinha... Fica esquecida, tímida, fechadinha (embora o coração sinta as emoções lá dentro se mexendo, cutucando, querendo sair...). Então chega a noite e ela não abre. Ela definitivamente ESCANCARA, revoltada, solta as amarras e soca todos os neurônios como quem diz: “porra, meu, será que agora dá”? Hei! Sou eu! EU!
E não pensem que isso é fácil assim não. Até chegar à idéia principal demora um bom tempo, porque tenho primeiro que descobrir o que é que "tá pegando". Feito isto, começo a compreender os fragmentos e flashes "vomitados".
É um quebra-cabeça. Junta aqui, separa ali, junta de novo, separa de novo (haja folha!). Risca ali, acrescenta aqui... (sou perfeccionista neste sentido). É um árduo trabalho. Quando percebo lá se foi meio caderno riscado pra sair em média uma folha, uma folha e meia, às vezes nem isso.
Mas sai. Ufa! Que alívio! Parece mesmo que sofri toda a dor de um parto, as contrações, a dilatação até chegar à expulsão final da cria, que ainda deve ser limpa, amamentada e acalentada.
Mas nasceu de mim... Fruto meu... Bom ou não, no que vai dar, Whatever!
Ah! Detalhe: não se esqueçam que a gestação leva tempo. Não é como fritar pastel, um atrás do outro.
É parto mesmo! Exige todo um processo. Processo de vivência, existência concretismo e abstracionismo.
Bem...
Acho que é mais ou menos isso.
Preciso dormir...
Preciso dormir...
Hoje, sem dor de parto.
Ao menos hoje.

PAM


Labirinto



Luz e sombra... Encanta e cega.
Labirinto com espelhos.
Desnorteia...
Luz que não se apaga,
Sombra que abala o chão.
Calor e frio:
Quando quente, acolhe,
Quando frio, aparta.
Multidão e solidão.
Dia e noite.
De dia exposto
De noite, fetal.
Na multidão, acessível
Na solidão, comprimido.
O dia não existe,
Á noite é o parto.
Da nascente
Do sono profundo.
Encanto e desencanto
Lembrança e saudade
Amargura e doçura
Que assassina e ressuscita.
Ódio intenso sem tamanho.
Carinho imenso sem medida.
Audaciosa carência escondida
Em envelope sem destino.
Labirinto sem saída...
Caminho com curvas, muralhas,
Espelhos que iludem
A inexistente saída.
Voz que ordena,
Mãos que oferecem
Tortura e afago.
Boca que cala,
Olho que fala...
Eco no labirinto que
Enlouquece os sentidos.



PAM
FOTOGRAFIA: RODRIGO COSTA


Labirinto



Luz e sombra... Encanta e cega.
Labirinto com espelhos.
Desnorteia...
Luz que não se apaga,
Sombra que abala o chão.
Calor e frio:
Quando quente, acolhe,
Quando frio, aparta.
Multidão e solidão.
Dia e noite.
De dia exposto
De noite, fetal.
Na multidão, acessível
Na solidão, comprimido.
O dia não existe,
Á noite é o parto.
Da nascente
Do sono profundo.
Encanto e desencanto
Lembrança e saudade
Amargura e doçura
Que assassina e ressuscita.
Ódio intenso sem tamanho.
Carinho imenso sem medida.
Audaciosa carência escondida
Em envelope sem destino.
Labirinto sem saída...
Caminho com curvas, muralhas,
Espelhos que iludem
A inexistente saída.
Voz que ordena,
Mãos que oferecem
Tortura e afago.
Boca que cala,
Olho que fala...
Eco no labirinto que
Enlouquece os sentidos.



PAM
FOTOGRAFIA: RODRIGO COSTA

Ina, Ina, Ina.



Carbamazepina, Fluoxetina, Cloridrato de amitriptilina.
Nada disso é demais, porém, nada disso é suficiente para preencher o vazio da minha sombra refletida no vidro da janela do vizinho da frente: o perfil de uma pessoa só, com seu cigarro pendurado nos lábios.
Sem mãos, sem olhos. Uma sombra.
A história se repete.
A pretensão de uma mente vazia com mãos e braços prazerosamente doloridos por segurar sua própria vida.
Não.
A cabeça cheia, cheia. Mãos e braços vazios. Flacidamente vazios.
Acho que os dedos foram feitos para que as coisas nos escorreguem pelas mãos, cedo ou tarde.
Queria ter "mãos" de pato.
Meus lábios estão secos e meu corpo vazio.
Meu ventre também está vazio.
Dor.
Tenho neurônios a menos, afinal, o álcool e as crises existenciais assassinaram meu cérebro.
Ser humano.
Se "ser humano" é um copo vazio junto a um cinzeiro cheio de bitucas, that's me!
Eu realmente, além de ter "mãos" de pato, gostaria de seu um inteiro.
É como nos sonhos: a gente se vê correndo em "slowmotion", olhando para trás, num puta esforço e percebe que quem te persegue NÃO está em "slowmotion".
É ser caça.
É quando nos sonhos a gente se vê no escuro tentando acender a luz e não consegue. Tentando gritar e a voz não sai.
Dor.
Já sonhou estar imersa numa piscina, tentar emergir e descobrir que existe um tampão de vidro sobre a água e por mais que você dê porrada ele não se quebra?
Sim, isso existe. Eu já passei por isso. Acordada...
Não há saída e não há como respirar.
Dor.
Monossílabo atônico.
Substantivo abstrato feminino singular.
Gramaticalmente lindo.
Dor. Ela não escorrega pelas minhas mãos humanas.
Teria eu mãos de pato? Seria eu um pato?
Pato.
Palavra paroxítona, dissílaba.
Substantivo concreto masculino singular.
Gramaticalmente "tosco".
O "tosco" pato tem nadadeiras nas "mãos". Nada escorrega entre os dedos.
Ar.
Oxigênio.
Aprender a respirar.
Ausência.
O ar que inalo é a nicotina e o alcatrão do meu cigarro.
Segredos.
Palavra paroxítona, trissílaba.
Substantivo abstrato masculino plural.
Não há segredo que não possa ser desvendado, a não ser o seu próprio.
Céu vazio. Nem lua nem estrelas.
Espaço vazio que minha mente preenche mediante tamanho, absurdo e inexplicável silêncio.
Dorme, meu bem. Dorme teu sono tranqüilo.
Dorme, que a pupila do meu olho se dilata e no escuro eu enxergo mais.
O medo é para as presas.

PAM

Ina, Ina, Ina.



Carbamazepina, Fluoxetina, Cloridrato de amitriptilina.
Nada disso é demais, porém, nada disso é suficiente para preencher o vazio da minha sombra refletida no vidro da janela do vizinho da frente: o perfil de uma pessoa só, com seu cigarro pendurado nos lábios.
Sem mãos, sem olhos. Uma sombra.
A história se repete.
A pretensão de uma mente vazia com mãos e braços prazerosamente doloridos por segurar sua própria vida.
Não.
A cabeça cheia, cheia. Mãos e braços vazios. Flacidamente vazios.
Acho que os dedos foram feitos para que as coisas nos escorreguem pelas mãos, cedo ou tarde.
Queria ter "mãos" de pato.
Meus lábios estão secos e meu corpo vazio.
Meu ventre também está vazio.
Dor.
Tenho neurônios a menos, afinal, o álcool e as crises existenciais assassinaram meu cérebro.
Ser humano.
Se "ser humano" é um copo vazio junto a um cinzeiro cheio de bitucas, that's me!
Eu realmente, além de ter "mãos" de pato, gostaria de seu um inteiro.
É como nos sonhos: a gente se vê correndo em "slowmotion", olhando para trás, num puta esforço e percebe que quem te persegue NÃO está em "slowmotion".
É ser caça.
É quando nos sonhos a gente se vê no escuro tentando acender a luz e não consegue. Tentando gritar e a voz não sai.
Dor.
Já sonhou estar imersa numa piscina, tentar emergir e descobrir que existe um tampão de vidro sobre a água e por mais que você dê porrada ele não se quebra?
Sim, isso existe. Eu já passei por isso. Acordada...
Não há saída e não há como respirar.
Dor.
Monossílabo atônico.
Substantivo abstrato feminino singular.
Gramaticalmente lindo.
Dor. Ela não escorrega pelas minhas mãos humanas.
Teria eu mãos de pato? Seria eu um pato?
Pato.
Palavra paroxítona, dissílaba.
Substantivo concreto masculino singular.
Gramaticalmente "tosco".
O "tosco" pato tem nadadeiras nas "mãos". Nada escorrega entre os dedos.
Ar.
Oxigênio.
Aprender a respirar.
Ausência.
O ar que inalo é a nicotina e o alcatrão do meu cigarro.
Segredos.
Palavra paroxítona, trissílaba.
Substantivo abstrato masculino plural.
Não há segredo que não possa ser desvendado, a não ser o seu próprio.
Céu vazio. Nem lua nem estrelas.
Espaço vazio que minha mente preenche mediante tamanho, absurdo e inexplicável silêncio.
Dorme, meu bem. Dorme teu sono tranqüilo.
Dorme, que a pupila do meu olho se dilata e no escuro eu enxergo mais.
O medo é para as presas.

PAM

É preciso cortar as asas



Então ela procurava encontrar a definição exata para sua condição ali... E entre tantos, todos falando quase que ao mesmo tempo, entre uma "viagem” e outra conseguiu a definição exata: Um papagaio. Sim! Era isso! Um papagaio! Era esse o personagem que lhe foi “docemente” atribuído.
Falsidade revestida de extrema sutilidade havia lhe imposto esse personagem. Um personagem que definitivamente seria o último dos últimos na sua lista de opções. Um personagem que suscita bestialidade. Um papagaio doméstico, daqueles que não tem gaiola. Tem lá seu puleirinho, sua água, comidinha, mas não tem grades que o prendam. Falsa ilusão de liberdade. Tem o vasto espaço da “casa” para explorar, mas suas asas são cortadas de tempos em tempos, para evitar que alce vôo. Então o tonto e iludido papagaio passa o tempo todo a se rastejar pelo chão em tentativas inúteis de alçar vôo, no entanto nunca consegue.
Seu dono observa. O papagaio está sob seu domínio. “Deixe que ele tente, deixe. Quando o abusadinho estiver quase conseguindo eu vou até lá, lhe faço um afago e corto suas asinhas novamente. Dessa forma ele continua a rastejar, sempre sob meus olhos. Deixe-o imaginar ser livre. Dessa forma posso dominá-lo melhor e quando quiser”.
Mas ele rasteja, rasteja...
Essa é a pior forma de domínio. Quem utiliza essa estratégia geralmente são pessoas que não gostam de ninguém, incluindo a si mesmas. Pessoas inseguras, com necessidade inalterável de auto afirmação. Pessoas carentes. Pobres carentes que para receberem um abraço precisam fingir que são felizes, simular que amam, mas são incapazes de amar porque estão em constante conflito interno com sua auto estima. Basta olhar dentro de seus olhos para perceber a infelicidade que se acumulou e cristalizou durante todos os seus anos vividos, infelicidade penitenciária.
Olhos vazios. Existe um brilho, de quando em quando nas tentativas de emergir, na vã tentativa de obter aconchego. Dá pena.
Vida consistente em materialidade, mentirosa benevolência e fuga constante de si próprio. “Não me olho no espelho. Não olho para ninguém. Não tenho ninguém. Não tenho nada. Eu uso sim as pessoas. Eu as uso para mostrar a mim mesmo que sou o melhor, que sou incomparável, que minha palavra basta, mas algo em mim teima em questionar incessantemente como eco no vazio se sou assim mesmo, ou se pelo menos sou algo... É preciso cortar as asas! Se não fizer isso eles voam e eu não quero ficar aqui embaixo, sozinho, como na verdade sou. Preciso ter alguém a rastejar. Isso me consola, me dá prazer e a sensação de que posso, de que posso...”.
E então ela rasteja. Entre outros, ela rasteja, e ele goza.

PAM

É preciso cortar as asas



Então ela procurava encontrar a definição exata para sua condição ali... E entre tantos, todos falando quase que ao mesmo tempo, entre uma "viagem” e outra conseguiu a definição exata: Um papagaio. Sim! Era isso! Um papagaio! Era esse o personagem que lhe foi “docemente” atribuído.
Falsidade revestida de extrema sutilidade havia lhe imposto esse personagem. Um personagem que definitivamente seria o último dos últimos na sua lista de opções. Um personagem que suscita bestialidade. Um papagaio doméstico, daqueles que não tem gaiola. Tem lá seu puleirinho, sua água, comidinha, mas não tem grades que o prendam. Falsa ilusão de liberdade. Tem o vasto espaço da “casa” para explorar, mas suas asas são cortadas de tempos em tempos, para evitar que alce vôo. Então o tonto e iludido papagaio passa o tempo todo a se rastejar pelo chão em tentativas inúteis de alçar vôo, no entanto nunca consegue.
Seu dono observa. O papagaio está sob seu domínio. “Deixe que ele tente, deixe. Quando o abusadinho estiver quase conseguindo eu vou até lá, lhe faço um afago e corto suas asinhas novamente. Dessa forma ele continua a rastejar, sempre sob meus olhos. Deixe-o imaginar ser livre. Dessa forma posso dominá-lo melhor e quando quiser”.
Mas ele rasteja, rasteja...
Essa é a pior forma de domínio. Quem utiliza essa estratégia geralmente são pessoas que não gostam de ninguém, incluindo a si mesmas. Pessoas inseguras, com necessidade inalterável de auto afirmação. Pessoas carentes. Pobres carentes que para receberem um abraço precisam fingir que são felizes, simular que amam, mas são incapazes de amar porque estão em constante conflito interno com sua auto estima. Basta olhar dentro de seus olhos para perceber a infelicidade que se acumulou e cristalizou durante todos os seus anos vividos, infelicidade penitenciária.
Olhos vazios. Existe um brilho, de quando em quando nas tentativas de emergir, na vã tentativa de obter aconchego. Dá pena.
Vida consistente em materialidade, mentirosa benevolência e fuga constante de si próprio. “Não me olho no espelho. Não olho para ninguém. Não tenho ninguém. Não tenho nada. Eu uso sim as pessoas. Eu as uso para mostrar a mim mesmo que sou o melhor, que sou incomparável, que minha palavra basta, mas algo em mim teima em questionar incessantemente como eco no vazio se sou assim mesmo, ou se pelo menos sou algo... É preciso cortar as asas! Se não fizer isso eles voam e eu não quero ficar aqui embaixo, sozinho, como na verdade sou. Preciso ter alguém a rastejar. Isso me consola, me dá prazer e a sensação de que posso, de que posso...”.
E então ela rasteja. Entre outros, ela rasteja, e ele goza.

PAM




Hora Errada

Sempre que eu dizia pra você que o nosso amor era pra sempre
Era tudo verdade, era um amor sem fim.
Sempre que eu dizia pra você que o mundo inteiro eu te daria
Era realidade, você era tudo pra mim.
Mas eu não sabia que essa coisa de amor também se acaba
Como acaba o café
Como acaba o cigarro
O combustível do carro... bem na hora errada.
Eu não sabia que essa coisa de amor também se acaba
Como acaba o rapé
O corte do gilete
O doce do chiclete... dentro da boca amarga.
Só que eu não sabia que essa coisa de amor quando se acaba
É bomba nuclear
É guerra do oriente
É coisa triste de se ver,
Ah eu não sabia q essa coisa de amor quando se acaba
É filme de terror
Nota desafinada
É coisa triste de ver.

Élio Camalle




Hora Errada

Sempre que eu dizia pra você que o nosso amor era pra sempre
Era tudo verdade, era um amor sem fim.
Sempre que eu dizia pra você que o mundo inteiro eu te daria
Era realidade, você era tudo pra mim.
Mas eu não sabia que essa coisa de amor também se acaba
Como acaba o café
Como acaba o cigarro
O combustível do carro... bem na hora errada.
Eu não sabia que essa coisa de amor também se acaba
Como acaba o rapé
O corte do gilete
O doce do chiclete... dentro da boca amarga.
Só que eu não sabia que essa coisa de amor quando se acaba
É bomba nuclear
É guerra do oriente
É coisa triste de se ver,
Ah eu não sabia q essa coisa de amor quando se acaba
É filme de terror
Nota desafinada
É coisa triste de ver.

Élio Camalle