sexta-feira, 21 de maio de 2010


DIÁLOGO



Hoje completa um mês. Há trinta dias venho, cotidianamente, ao mesmo local, na tentativa de reencontrá-la. Cheguei a vir até quatro vezes em um mesmo dia, na esperança de revê-la. É estranho, ainda acho difícil entender tudo o que houve. Na verdade, sinto-me estranho, confuso, ao relembrar como tudo aconteceu. Ano após ano, tudo parecia seguir a um roteiro predeterminado pela inteligência dos semáforos. Em meu caminho diário, acabava por parar, inevitavelmente, nesse farol e, sistematicamente, era abordado por pedintes e miseráveis que, como camaleões temáticos, mimetizavam-se em vendedores de guardachuva nos dias encobertos e, em vendedores de bandeiras, nas vésperas das finais de campeonatos. Entre essas figuras, uma me chamava a atencão de modo muito particular. Uma senhora de idade avançada, bem desgastada pela vida, despertava em mim, uma repugnância imediata. Não saberia dizer quanto tempo “convivi” com essa senhora, sempre no mesmo cruzamento, a poucos segundos de distância. Sua aparência, suas roupas esfarrapadas, sua sujeira, causavam em mim um mal estar de proporções inquietantes.Todas as vezes em que ali estive, ela se aproximava da janela do carro percorrendo o mesmo caminho, iniciando um ritual bastante conhecido. Eu evitava o seu olhar e fingia não notar a sua presença, antes que ela me dissesse ou oferecesse algo. Alguns dias, sofria por antecipação ao lembrar que estaria tão perto dela, mesmo que por poucos segundos. Cheguei a tentar outros caminhos, mais longos, mas que me livrassem daquela pessoa intragável. Agora ao relembrar esses incômodos encontros cotidianos é que percebo que, nas minhas tentativas de ignorá-la, nunca cogitei a idéia de que ela pudesse ter algo a me oferecer. Mantê-la à distância parecia-me a solução possível, ignorá-la, a ideal, ate' esse encontro especial que ficou marcado no calendário. Nesse dia, como de costume, já preparava meu espírito para vê-la, quando imediatamente no momento em que parei no farol, meu celular tocou desviando minha atenção. Quando levantei novamente meu olhar, olhei diretamente nos olhos desta velha desconhecida e assustei-me, de tal sorte, que gritei com todo o meu fôlego, como se tivesse recebido uma forte descarga elétrica. Surpreso e envergonhado pela minha reação tão imprópria agi, de maneira ainda mais inesperada e contraditória, ao perceber que meu alvo de observação também havia se assustado com meu grito. Abri então, não o vidro do carro, mas a porta do passageiro e, gentilmente, sinalizei para que ela entrasse, pois o semáforo já deveria estar prestes a abrir. Talvez, pelo inusitado da situação, ela obedeceu como um autômato responderia ao apelo de seu criador e entrou no carro ocupando o assento do passageiro no mesmo instante em que soou a primeira buzina que se antecipava à tão esperada luz verde. Mais uma vez, percebi que apenas reagia ao acelerar o carro, sem saber aonde ia, para onde levava aquela pessoa até então uma estranha. Tinha apenas uma certeza, a aversão que senti desde o primeiro instante em que a vi, transformava-se, inexplicavelmente, em uma fascinante cumplicidade, como se embora desconhecida, ela representasse algo de estranhamente familiar que, há muito, desejava reencontrar. Seu olhar transbordava uma confiança que me parecia imprópria para alguém que vivia indecentemente na rua, em situação de risco e de total abandono. Um leve sorriso de paz coloria sua face desgastada pelos anos expostos ao sofrimento, como se ela soubesse o final das estorias que eu ainda não vivera. Entreguei-me à essa atração e encostei o carro. Foi quando, sem que nenhum de nós dissesse nada, compreendi que há muito tempo ela tentava fazer um contato comigo, sempre no mesmo semáforo, tão tangível, a poucos segundos de distância. Percebi que somente há instantes é que havia, pela primeira vez, olhado diretamente nos seus olhos. Lembro-me que, nesse momento, senti a tristeza de toda a sua infeliz vida, cair sobre mim como um raio. Conheci em segundos todo o seu medo. Vivi, em um átimo, todo o preconceito que a impediu de progredir. Ainda sim, em seu silêncio, afirmou com grande clareza e autoridade, que nem tudo era o que parecia ser. Compreeendi naquele instante, que aquilo que vemos nos outros não passa de um reflexo daquilo que trazemos dentro de nós mesmos e que, antes de tudo, havia sido a sua pobreza que me ofendera. O medo do fracasso e da velhice, que ela, até então, representava tão bem, e que me apavorou tanto, silenciosamente, ao longo de toda a minha vida, havia se diluído, quase que por mágica, com seu sorriso infantil. Respondi apenas com um sorriso, simples e sincero, como nunca havia conseguido. Sem desviar seus olhos dos meus, abriu a porta do carro e saiu, quebrando o encanto em que estivemos mergulhados. Atendendo novamente, a uma ordem interior, liguei o carro e segui em meu novo caminho. Mais do que o cruzamento de nossos silêncios, cruzamos nossos segredos mais escondidos, sem que dessemos conta do poder desse encontro. Se nossos corações se uniram, tão profundamente, por alguns segundos ou se já estavam juntos por toda a vida, nunca saberei dizer. Hoje completa um mês e, finalmente, começo a duvidar que esse efusivo diálogo silencioso, tenha realmente acontecido.
Há trinta dias, na verdade, talvez eu tenha conhecido... a compaixão.



Augusto Citrangulo
São Paulo, 14 de agosto de 2009

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