quarta-feira, 19 de maio de 2010



A PEDRA



Logo que entrei senti algo diferente naquele ambiente que sempre me fora tão familiar. Meus sentidos sinalizavam que havia mudanças sutis transformando aquele local que sempre imaginei cristalizado. Uma leve brisa arrepiou meu braço trazendo um sabor de novidade e um aroma de renovação. Ruídos vinham da rua logo abaixo com uma clareza que até então julgaria impossível. A paisagem lá fora, emitia pela janela uma forte luz difusa que cintilava nos prédios vizinhos, causando-me uma cegueira branca, intensa. Apenas neste momento notei um velho homem que falava, como se repetisse o mesmo discurso, desde os tempos mais remotos. Percebi que ele trazia em suas mãos uma pedra, pouco maior que uma maçã. O mais estranho foi que, só então, pude entender a causa das mudanças. O tapume que cobria a janela não estava mais lá. Acostumei-me com ele ali, ao longo de todos esses anos, décadas na verdade. A cor da madeira, escurecendo através dos tempos, as manchas crescendo em sua velocidade imperceptível para olhos cotidianos. Acostumei-me com ele ali, ao longo de todos esses anos, acho que até cheguei a gostar dele. É verdade também que a sua existência nunca favoreceu a ampliação de meus horizontes mas, estava lá, sempre esteve. Atraído pela luz, descobri que aquilo que, durante tanto tempo, acreditava ser apenas uma janela, era uma porta que levava a uma varanda enorme. Seguido de perto pelo velho homem, ia sair para conhecer a paisagem quando, pela primeira vez, compreendi que ele tentava se desculpar, explicando dolorosamente, que fora ele que, por acidente, havia derrubado a fina madeira apodrecida que teimava em esconder os sentidos vitais da cidade. Há anos, contou-me ele, um pedaço de alvenaria caiu da mureta depois de uma forte chuva. Não sabendo como recolocá-lo no lugar,desistiu de consertar a parede, cobriu a janela com madeira para não ver o muro quebrado mas, guardou o pedaço. Vi então que a pedra em suas mãos era esse caco âmbar do passado, ainda insepulto. Retomei meu caminho para a varanda, curioso em encontrar o lugar de destino daquela peça. Nada mais do que três passos consegui caminhar até que todo o piso externo ruísse abaixo de mim. Toda a estrutura estava podre. Do piso às paredes. Tudo o que fora ocultado quando novo agora jazia explicitamente velho. Recuperado do susto observei os edifícios ao meu redor. Encontravam-se no mesmo estado, como se toda a paisagem tivesse envelhecido em alguns poucos segundos. Mais do que isso, me dei conta de que era atentamente observado por um frontão vivo, dinâmico, de figuras romanas, armadas para a guerra, que desfilavam em um pavimento de um prédio vizinho. Agora o velho homem já chorava, consciente de que seria impossível recolocar aquela preciosa peça de fechamento no quebra-cabeça de sua vida. Saí em silêncio. Ao fechar a porta atrás de mim, uma mancha escura invadiu o hall do elevador. Como uma gota de tinta sobre um papel úmido, alastrou-se rapidamente, cobrindo tudo, como uma noite de nanquim.


texto: Augusto Citrangulo
http://www.volkano.tk
fotografia: Rodrigo Acosta

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