terça-feira, 29 de junho de 2010

GARGALO





Hoje quando eu olho para minha pia cheia de louça suja eu me pergunto "por que? Por que, meu santo deus, eu brigava tanto com a minha irmã, quando era criança para lavar e enxugar louça?".
A gente quase saía no tapa pra enxugar louça. Às vezes pegava minha irmã enxugando louça escondida de mim. Ficava louca de raiva! Xingava! Como ela era capaz de fazer isso comigo? Enxugar louça na MINHA vez de enxugar... ESCONDIDA! Sacanagem...
Minha mãe passava roupa até altas horas. Ligava seu radinho de pilha na lavanderia, colocava no programa do Gil Gomes e ficava lá alisando o pano que a gente ia amassar.
Me lembro que ela "viajava" nas histórias do Gil Gomes. Ele contava casos horríveis, de fundo uma musiquinha que causava suspense na história, e no ápice do conto ele parava para fazer propaganda de remédio. Depois retomava a contação, sempre recontando quase tudo o que havia contado antes da propaganda, depois contava só mais um pouquinho do que ainda não havia sido contado e... Parava para fazer mais uma propaganda de outro remédio diferente. Ela? Alisava o pano. O pano que ia ser amassado.
Ela mandava minha irmã me bater quando eu fazia algo errado. Eu era respondona (ela dizia...), não parava quieta, vivia pregando sustos na minha irmã.
Minha irmã sempre se assustava comigo, dava um pulo e abria o bocão num choro irritantemente alto, inevitável que minha mãe nao ouvisse. Eu sentia um prazer enorme. Sabia que ia apanhar, mas adorava ver minha irmã cair em minhas armadilhas e chorar. Era uma grande realização pra mim. Sentia-me satisfeita, como se tivesse realizado algo impossível de ser realizado.
Houve um dia que eu tive uma idéia mirabolante. Estava passando pelo tanque e vi um pedaço de sabão em pedra cor de laranja já usado, gasto. Parecia com aqueles doces de abóbora que a gente comprava no bar (naquela época a gente comprava doce em bar, e só existia doce mixuruca desse tipo, doce de banana triangular, aquele sorvetinho com uma maria mole em cima que sempre vinha acompanhado por um brinde, geralmente um anel de plástico ou um brinquedinho, doce de batata doce, suspiro quadrado cor de rosa, balas e chicletes ploc e splash),não deu outra! Peguei um papelzinho embrulhei o docinho de sabão (risadas maquiavélicas mentais), exatamente como o homem do bar fazia e levei até ela. Entreguei e disse "olha só o que eu comprei pra você". Ela feliz e lombriguenta logo pegou o doce, nem cheirou, abocanhou e adivinha? Chorou!
Nooooosssssaaaaa! Que satisfação! Eu sabia que ia apanhar, mas confesso que meu prazer era muito maior do que o medo do chinelo. De fato apanhei. Apanhei feliz.
Eu tinha ciúme da minha irmã. Achava que minha mãe e meu pai gostavam mais dela do que de mim. Não sei de onde tirei isso. Cismei. Depois que o tempo passou essa cisma também passou.
Eu gosto dela. Acho que vamos ficar velhinhas ranzinzas e sós, daquelas que passam o resto do tempo que resta a relembrar histórias engraçadas de infância, a lamentar a ausência dos filhos, a rir das cagadas de mãe de primeira viagem (sempre somos, sempre seremos, não importa a quantidade de filhos), incomodadas com a gordura que teima em acumular na cintura fazendo dobras pneumáticas e com as varizes cada vez mais grossas, azuis e doloridas.
Sei que ela sente minha falta hoje, mas tenho certeza que seremos mais unidas amanhã. Não me culpe por isso, sou assim. Tudo a seu tempo.
A minha pia cheia de louça sempre está cheia de louça. Parei de passar minhas roupas, porque sei que vou amassá-las. O pó acumula na estante. Deixe ele lá, é lá que ele deve estar, marcando o tempo.
Meu tempo já está no gargalo da garrafa, passando rápido demais para que eu me preocupe a toa. São apenas detalhes.
Quando a garrafa estiver cheia, peço a alguém que a tampe. Que seja sob seus olhos azuis, que sua mãozinha ainda jovem o faça.
Encerro então esse tempo. Tudo a seu tempo.

PAM

obra: Alan Cassiano
www.alancassiano.com

Um comentário:

P L disse...

Oi, Pam.

Encontrei seu blog por meio de um blog amigo. Gostei muito do seu texto, pois me fez lembrar de algumas peripécias da minha infânfia. rs

Também me fez lembrar um livro chamado "Sobre a brevidade da vida", do Sêneca, que trata muito desse aspecto do tempo que se esvai e de como realmente aproveitá-lo melhor. Um trechinho que combina com o seu texto, se me permite:

“Não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que ela já passou por nós sem que tivéssemos percebido.”

Estou seguindo-te!

Beijos,
Patrícia Lara