quarta-feira, 23 de junho de 2010






Meu pai sempre foi uma pessoa reservada. Talvez pela calosidade provocada durante o percurso da vida. Falava pouco. Saía cedo para o trabalho (entrava às 07h23 min) e voltava apenas no final da tarde, quase na hora do jantar (saía às 17h).
Chegava religiosamente no mesmo horário. Esperávamos dentro de casa, apoiadas no beiral da janela. Ao vê-lo descer a rua, saíamos correndo ao encontro dele e só então entrávamos para jantar.
Não sei ao certo o que nos tornava tão próximos. Nós quase não conversávamos, tínhamos pouco contato, pouco sabia dele, de suas angústias, alegrias, preocupações, mas éramos muito ligados, ligados por um fio inexplicavelmente resistente e invisível.
Ele não permitia que conversássemos durante o jantar. Se alguém se atrevesse a puxar conversa ele logo dizia: Na hora que se come não se fala. Calávamos.
Com minha mãe era diferente. Passávamos o dia todo juntas e ela vivia me dando bronca, porque eu era muito danada. Ela se agarrava em meus cabelos, chacoalhava minha cabeça até que eu ficasse tonta e gritava: Você me deixa looooooouca! Tudo bem, eu a deixava louca mesmo, não posso negar. Eu fazia questão de irritá-la até que ela se descontrolasse a ponto de fazer de minha cabeça uma omelete.
Adorava agarrá-la quando estava lavando roupa no tanque. Ia por trás, quietinha, grudava na cintura dela e beijava seu pescoço, depois fazia cosquinhas. Ela me ensaboava toda com as mãos molhadas. Eu jogava espuma no nariz dela e saía correndo.
Minha mãe era meu saco de pancadas e eu o dela.
Meu pai era o cara que era distante e ao mesmo tempo próximo, que acordava a gente arrancando o cobertor aos finais de semana para ir nadar (odiava isso).
Meu pai fumava, mas não queria que a gente fumasse.
Um dia ele parou de fumar. Eu não.
Um dia ele estava tomando refrigerante e riu. Nesse dia eu pude conhecer um pouco melhor sua história. Ele falou pouco, rapidamente e logo parou. Nunca mais tocou no assunto e eu também não perguntei.
Ele nos contou que quando era criança, ele e seus sete irmãos, eram muito pobres. Disse que sua mãe e seu pai vieram para o Brasil fugidos da Guerra. Trabalhavam na roça (dos outros), e que só tomavam refrigerantes uma vez ao ano, no Natal, quando seu pai (meu avô) comprava apenas uma garrafinha de refrigerante para cada um dos filhos. Era a única garrafinha do ano, e a grande diversão desse dia não era a galinha assada cedida pelo patrão que posava na mesa para ser devorada, coisa que não acontecia durante o ano todinho, mas sim o refrigerante, o tal refrigerante pelo qual esperavam o ano todo para tomar e fazer competição de arroto. Contou-nos também que houve um dia que um balão caiu na roça e tudo pegou fogo. Dizia que não tiveram tempo para salvar nada. Com o olhar mais triste do mundo disse: tudo queimou, porco, galinha, horta, casa e até o cachorrinho que estava preso na corrente que não foi possível soltá-lo a tempo para que pudesse escapar.
Contou que ficou de pés descalços no chão de terra, à noite, olhando o fogo tomar conta de tudo matando os bichos aos poucos, que gritavam uma sinfonia dolorosa ao serem consumidos pelo fogo.
Minha mãe era escandalosa, caprichosa, queria tudo do jeito dela. Uma mania de limpeza que me deixou marcas. Amo o pó, graças a ela. Filha de portugueses, carioca, vaidosa, mantinha um arsenal de produtos de beleza e maquiagem.
Meu pai a presenteava com jóias. Ela só usava jóia. Morreu com elas e foi enterrada de unhas recém pintadas. Contraste entre esmalte fresco e carne costurada, que tentávamos esconder debaixo das golas de sua blusa. Ela ficou roxa, teve hemorragia interna e o sangue se espalhou por toda parte de baixo de seu corpo deitado.
Era uma mulher apaixonada. Dizia que se um dia se separasse de papai não iria criar a gente. Que a gente ficasse com ele. Ela ficaria livre.
Ela queria paz e teve, lá do jeito dela. Procurou de forma errada e encontrou uma paz incômoda.
Não a culpo. Nem meu pai. A gente não recebe manual de instruções quando tem filho. Vai criando do jeito que acha que é certo e noventa por cento das vezes erra. Isso é imutável.
Daqui a três anos terei a mesma idade que minha mãe tinha quando morreu. Eu a achava velha, mas ela não era, apenas tinha mais cabelos brancos do que eu.
Meu pai está com a pele opaca (a renovação celular um dia para). Vejo nele meus traços, e acho que ele os vê em mim. Ele acha que vai morrer. Não fala sobre isso, mas eu sei que ele pensa. Tem umas atitudes esquisitas, fica falando toda hora para enterrá-lo em São Paulo, faz questão de ser transportado pelo taxista amigo dele (caso ele não morra antes dele), não quer discórdia entre as filhas e a mulher dele.
A mulher dele é uma japa bem japa. Chata, mas cuida dele. Cozinha, lava, passa, faz companhia. Foi ele quem a escolheu, mas ela é chata. Faz a política da boa vizinhança, mesmo assim continua sendo chata.
Ela gosta de pão de queijo oco. Onde já se viu? Isso é inadmissível! Teima em dizer que o pão de queijo oco dela é melhor do que o pão de queijo tipicamente mineiro que eu faço. Ahhhhhhhhhhh! Me poupe.
Essa família é mesmo estranha. Todo mundo longe fazendo de conta que está perto. Telefonam um para o outro para dizer oi, porque não há assunto além do oi, a gente se perdeu, cada um tomou seu rumo e eles simplesmente não admitem isso. Sentem-se na obrigação de telefonar. Bom para as empresas de telefonia, eu não gasto grana com isso.
A gente cria filho para o mundo, não pra gente. O mundo espera que a gente faça isso.
Aliás, hoje o mundo até prefere que não façamos mais filhos. Até ele já se encheu dessa missão de acolhimento.
Bicho teimoso o homem. Vê mas não enxerga. Vive num faz de conta.
Não é mais fácil ser espontâneo?

PAM

3 comentários:

Jorge Xerxes disse...

Pam, Gostei Muito do Seu Texto (e do Blog)! Sim, é mais simples e natural a espontaneidade. Um Beijo, Jorge X

PeLudiNhoS disse...

amiga..adorei essa hist, como vc a descreveu passando emoçao, linda!!!
carmem

Blog do Akira disse...

Parabéns pelo texto. Cada família tem os seus silencios específicos.