segunda-feira, 14 de junho de 2010

MORFINA




Cheguei, sentei no mesmo canto do sofá, como de costume e esperei.
Entrei. Sentei e disse:
-Oi, tudo bem?
-Oi, tudo bem sim, fora a dor horrivel que estou sentindo. Acho que é vesícula. Não repare se eu não responder suas perguntas, ou ficar pasmada. É que tomei uma dose de morfina para aguentar a dor. É o único remédio que faz passar minha dor.
-Tá, tranquilo.
Eu já estava acostumada a vê-la dopada de morfina. Durante os mais de dez anos de convivência presenciei diversos tipos de dores, todas controladas com doses de morfina.
Ela riu:
-Que merda de vesícula! Não sei porque a gente tem isso.
-É... Se cuida. (Odeio quando as pessoas falam isso pra mim.)
-Mas eu ainda estou fumando.
-Ah! Fumar é bom demais! Eu já passei por diversas tentativas de "largar o vício", todas frustradas. Também continuo fumando.
-É... fumar é o único prazer que tenho. Meu ÚNICO, íntimo prazer.
-É... todo mundo fala dos males do fumo, mas nínguem fala dos benefícios. É companhia, é prazeroso. Pra mim faz bem.
-Lógico! Imagine eu, toda fodida de dor, a base de morfina, se não pudesse fumar um cigarrinho...
-Punk. Foda é esse lance de ter que ficar se policiando quando fuma. Depois dessa tal lei anti-fumo, a gente não pode mais nem fumar no ponto de ônibus coberto. Tem que abrir o guarda chuva e fumar de ladinho... Aliás, guarda chuva é considerado uma cobertura, não? Será que é permitido fumar debaixo do guarda chuva?
-Ah! Vamo combiná, né? Essa lei anti-fumo é totalmente inconstitucional! Sim! Inconstitucional! Perante a Constituição, temos o direito de ir e vir, e além disso, o direito de escolha, portanto essa lei não vale nada. É que ninguém abre um processo, porque se abrisse, com certeza ganharia a causa. Veja só. Outro dia estava eu na calçada em frente a uma lanchonete de uma amiga, fumando. DO LADO DE FORA, NA CALÇADA. Aí um cara que estava sentado lá no fundo reclamou do cheiro do MEU cigarro, que estava lá, DO LADO DE FORA. Minha amiga, dona do estabelecimento, chegou em mim toda cheia de dedos, morrendo de vergonha e pediu que eu apagasse meu cigarro, pois estava incomodando seu cliente. Eu olhei bem pra ele, sozinho na mesa forrada de garrafas de cerveja vazias e disse em tom alto e claro: "Engraçado, ele está incomodado com a fumaça do meu cigarro? Bebida é uma coisa que me incomoda ao extremo, nem por isso pedi a ele que parasse de encher a cara". Todos os outros clientes olharam pra ele e riram. Ele se envergonhou, se acabrunhou e se aquietou. Antes de ir embora, passei no caixa e pedi que servissem um rabo de ralo pra ele, por minha conta. Acho que rabo de galo é uma bebida forte, não? Pelo que sei é a mais forte que conheço. Odeio bebida.
Rachei o bico.
-VocÊ vai voltar ao trabalho ou vai pra casa?
-Sinceramente? Estou louca de vontade de ir pra casa dormir.
-Eu também, pena que não posso.
-Falou. Se cuida, heim? (sei que fui cruel..)
Peguei a declaração e fui embora.
Morfina. Quanta morfina.


PAM ORBACAM

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