quinta-feira, 7 de abril de 2011

CHEIRO





Confesso e afirmo que hoje acordei com o olfato apurado demais, fato esse que me causa estranhamento justamente pela minha deficiencia olfativa constante proveniente do excesso de fumo e substancias ilícitas consumidas há anos na juventude.
Saí de casa em direção ao trabalho. Droga! Esqueci a porra da fluoxetina. Por mais que eu tente manter regularidade e constancia nessa merda de vida eu não consigo. Caso, descaso, me apaixono tão facilmente quanto me desapaixono, tomo o fenobarbital e tomo cachaça de cambuci, entro no trabalho as 14 horas e chego em cima da hora quando não chego uma hora antes e fico vagando feito alma penada na Praça do Carmo. Esqueci a porra da fluoxetina. Pressinto que o dia será atípico... ou típico.
Tróleibus incrivelmente lotado as 13h14min. Por que tanta gente teima em andar pela cidade que fede a lixo?
Uma criatura levanta para descer no próximo ponto. Sento. O homem ao meu lado, um senhor já de certa idade, exala um cheiro insuportável de banho não tomado associado a roupa já usada por dias.
Tentei distrair a mente pensando em bobagens. Nossa! Preciso devolver a blusa do Araújo! Já faz um ano que ele gentilmente me emprestou seu jaquetão de frio e eu ainda não o devolvi... Puta sacanagem com o cara. Merda, esqueci a porra da fluoxetina...
Definitivamente é IMPOSSÍVEL ficar sentada ao lado do pobre senhor. Levanto. Um homem se acomoda ao meu lado dividindo comigo e com as bactérias o ferro onde todo mundo coloca a mão todos os dias na tentativa de não cair sentado no colo de outro passageiro numa provável freada brusca do motorista, que passa o dia a passar a flanela encardida e suada no rosto. Deve estar fedendo...
Além disso, o homem que divide comigo as bactérias do ferro está com o mesmo cheiro do pobre senhor que estava sentado ao meu lado.
Troco de lado. Tudo bem, eu exagerei um pouquinho no perfume hoje, foi uma apertada aflita no pininho do frasco, mas... Vá a merda! Custa tomar um banho e lavar as roupas?
Meu olfato amanheceu aguçado. Merda! Esqueci a porra da fluoxetina. Preciso beber uma gelada. Preciso colocar algodão no nariz.
O dia passou, como sempre passa. Algumas pessoas interessantes me visitam de vez em quando na biblioteca, mas hoje eu pude perceber o cheiro delas, inclusive as que não tem cheiro... nenhum.
A noite chega, O Marcelino chega. Eu sento no chão de madeira, abraço as pernas, sozinha, do lado de fora da sala do curso e tento participar isoladamente como ouvinte.
Um homem bem vestido, alto, peruca branca, olhos azuis pergunta pelo recital. Digo que já foi. Ele lamenta pelos belos olhos azuis que já não lhe permitem enxergar direito o horário no convite...
Sento isoladamente no chão de madeira, do lado de fora da sala, abraço as pernas, encosto o queixo no joelho e tento participar como ouvinte do curso do Marcelino.
Merda! esqueci a porra da fluoxetina... Merda! Ainda sinto o seu cheiro de carne alva e fria do dia anterior.


Pam Orbacam

4 comentários:

Flávio Mello disse...

Oi... deusa Pam,
quando digo que me identifico... lendo esse entende?
minha cara (metade) de mim e do meu texto.
citadina, encardido... os fatos de uma vida que se trinca.
escreve tão bem.
imagens que se descongelam ao momento lido.
fragmentos de você que se desprendem do livro.
parabéns.
e esse último cheiro, atenuou os demais do seu dia?
espero que sim...

beijo

Flávio Mello

PAM ORBACAM disse...

Oi professor! Que bom te-lo por aqui, batendo em minha porta...
Quanto a sua pergunta final, digamos que é uma coisa pra não se pensar, entende?
beijo

Theone disse...

Me deixaste em lágrimas,
são elas puras, cristalinas, sinceras, ou são o asco que atravessa minhas visceras na comtemplação da natureza caótica do mundo?

Seja o que for, desde "Tabacaria" não me sentia assim.

Obrigado.

Paula Miasato disse...

nossa! honradíssima!