Embora meu pensamento nesses últimos dias esteja tomado pela cacetada violenta de um passado não muito distante, entretanto inesgotável ainda que não resgatável, não sei ao certo explicar o porquê da tua imagem estampada na minha cara hoje quando entrei no ônibus a caminho do trabalho. Tranco dos bons, o necessário pra estar contente e aliviar a cacetada da realidade.
Aliás, não sei explicar porque quando entro num coletivo você me vem à mente. Acho engraçado associar sua figura de uma beleza que agrega algo entre o romântico e o pervertido a um objeto assim tão comum no meu cotidiano pessoal e ao mesmo tempo tão abstrato na nossa “história”, se é que se pode dizer assim, não encontro a palavra adequada, talvez seja “momento”, ou melhor, personificando a código de barras: “instante instável super hiper mega planejado e interrompido por foice ou cutelo definitivamente não alinhavável nem a agulha de carne e evaporado por palavras mal pensadas advindas de uma mente insana e impetuosa feminina”.
O transporte coletivo me lembra você. Que mixo. Poderia ser uma escultura, um poema de Drummond ou uma música do Chico, mas o que de fato leva meu pensamento à lembrança de sua pessoa é o transporte coletivo. É incomum, mas eu gosto. Gosto do desigual.
Devo me transformar em uma daquelas figuras abominavelmente estranhas que a gente flagra dentro dos coletivos fazendo caretas e esboçando risinhos estranhos e cínicos, às vezes mórbidos ou patéticos e toma como certo o diagnóstico: Psicose Esquizofrênica Delirante. Internação.
A verdade é que quando sento e me deixo levar ao trabalho ou a qualquer lugar que seja aos solavancos de péssimos amortecedores e ruas visivelmente porosas é batata: vejo você, sorriso pálido, desenhado, risquinhos (e não covinhas) nas bochechas, meu olho refletido no vidro dos seus óculos e por trás deles os seus, grudados nos meus.
Só depois disso então a música lentamente invade a cena traçando o mapa-múndi junto a caneca de café recém coado, da madeira molhada e das mãos geladas. Sinestesia pura. O sexo úmido e quente. O cheiro do café com sexo e do cigarro com o sabonete Lux Luxo (que mixo) separado até ontem na saboneteira a espera do próximo banho. Ontem por acaso eu abri a saboneteira. Ele está trincado, seco. Passou-se já algum tempo. Joguei no lixo.
Que mixo um coletivo me trazer lembranças de você. Além disso, enigmático.
Que mico admitir que eu pense em você, mas eu penso e acho isso ridículo. Rio sozinha e confesso, sinto uma sensação boa e única ao lembrar das mãos geladas e trêmulas alheias ao corpo quente, a pele branca e o sorriso convidando minhas coxas a sorrir junto como uma dança, um tango, expondo o subconvite escancarado da vulva molhada numa cumplicidade instantânea e voraz. “Vem!”.
A boca que nega o beijo e faz crescer o meu desejo, desejo e anseio que me trazem a lembrança e a impressão de que não aconteceu. Talvez não tenha mesmo acontecido. Talvez tenha sido apenas sonho. É. E sonho é sonho...
Eu talvez pudesse alterar minha conclusão se casualmente roçasse meu corpo de costas contra o seu e quem sabe até afirmaria com veemência se você propositalmente apalpasse minhas nádegas como naquele dia (sonho?), no momento em que sentei no seu colo e abri seu livro (não posso abrir livros, o mundo ao meu redor some).
Como diz Cazuza, “eu acredito no meu lado português sentimental”. Sonho ou realidade, seja lá o que aconteceu, ainda sinto seu cheirinho. Algo entre o romântico e o pervertido ficou grudado na mucosa das minhas narinas.
2 comentários:
É muito belo, é triste mas é também delirante.
Adoro seus textos.
;)
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