terça-feira, 1 de maio de 2012

CÃO VADIO DE LUA


obra: Ricardo Passos da série "Era uma vez uma Rainha"

Três mil anos se passaram e após tanto tempo hoje não reconheço o homem que se deita ao meu lado. Hoje ele passou o dia fora, disse que ia trabalhar, não foi. Voltou quase de madrugada, foi ao quarto, me acordou e selou minha boca com um beijo não correspondido. Olhou pra dentro dos meus olhos e disse: vejo desprezo. Não respondi, era verdade mesmo. Após três mil anos ele só ganhou. Ganhou meu desprezo e indiferença, conquistados arduamente pelo seu esforço voluntário em me fazer sentir um lixo. Foi pra cozinha fazer janta, me acordou novamente e me chamou pra comer. Ele odeia comer sozinho. Egoísta. Há obviamente os que me diriam que isso foi um ato altruísta, afinal ele cozinhou pra mim. Não, ele cozinhou pra ele e odeia comer sozinho. Virei enfeite de mesa e depósito de esperma.
Ele se sente estuprado. Odeia a ideia de ter uma esposa puta, puta mesmo, no sentido de vagabunda, vadia. Ele diz que sou viciada em sexo e que se sente estuprado, mas que gosta, mas que odeia, mas que não quer uma vadia na cama, quer sua mulher, mas adora a vadia que tem na cama. Um geminiano típico. Sempre odiei geminianos, são indecisos, tem duas caras. Idealistas, querem tudo ao mesmo tempo e não se dão conta de que isso não é possível.
Estupro mesmo. Abuso. Sugo até a última gota. Sou vampira de esperma. Não fico sem. Tem que ser macho de verdade pra me aguentar. Tem que levar tapa na cara e cumprir o papel de homem, marido e macho. Cada um com seus vícios. Ele com os dele, eu com os meus.
Cão vadio de rua, que anda sob garoa e luz de lua. Cão vadio de lua. 
Minha solidão é a presença de ausência. Eu não gosto de ouvir a chave na fechadura estando do lado de dentro. Sou egoísta também. Quero estar do lado de fora, não me importa se sozinha ou acompanhada.
Hoje não me importa. Alías, hoje não me importa absolutamente nada do que ontem havia importância. Eu sou assim, observo, ouço, espero e as coisas apenas acontecem. Minhas escolhas estão feitas e não há mais o que decidir, elas tomam rumo próprio diante dos fatos. 
Aquele dia eu devia mesmo ter saído. Do jeito que me vesti, como vagabunda. Vestido colado, decotado e curto, salto alto e fino adornando a cara de vadia que quer sexo (sempre quero). Devia ter feito como planejado. Primeiro homem, primeira esquina, colava a cara no poste e erguia o vestido o suficiente pra que ficasse a vista a calcinha fio dental preta e o anel de coxa. Arrebitava a bunda e oferecia o rabo em pé, grudada no poste. Depois voltava pra casa mordida, arranhada, chupada, descabelada e maquiagem borrada, cheirando a porra de rua, porra de desconhecido, só pra dividir o cheiro com o cão vadio de lua. Ele ia gostar. Ele gosta. Gosta de foder sentindo cheiro de outro macho. O pau fica mais duro ainda e ele goza horrores, me machuca todinha e ainda leva uns tapas na cara enquanto é chamado de corno. Ele chora, mas gosta.
Pra alguém que vive o tempo todo levando tão a sério a presença do número três só há uma saída: a presença de um terceiro, afinal de contas, o número três significa a resolução de conflitos.
A mim cabe essa missão, embora eu tenha levado três mil anos pra perceber.

Paula Miasato

Um comentário:

Carmosita Senna disse...

Vim dissertar na sua página. PUTAQUEPARIU que texto foda! Eu li, reli, 3mil vezes, foi como ver passar séculos no seu texto. vi um vazio, preenchido, onde você estava? "Minha solidão é a presença de ausência. Eu não gosto de ouvir a chave na fechadura estando do lado de dentro. Sou egoísta também. Quero estar do lado de fora, não me importa se sozinha ou acompanhada". fechaduras que gostam de arrombamentos, gostam de tapas gostam do cheiro do outro no corpo deste... estou EMBASBACADA.